Ditadura, doenças e mortes na Amazônia
Marcus Barros conta que ficou alheio ao golpe na
adolescência, e que sentiu a repressão da ditadura na faculdade de medicina
06 de
Abril de 2014
IVÂNIA
VIEIRA
Os projetos realizados na Amazônia brasileira a
partir do golpe militar de 1964 produziram adoecimentos e mortes em larga
escala na região. A afirmação é do médico amazonense, nascido no Município de
Eirunepé, no Alto Juruá, Marcus Luiz Barroso Barros, 66, especialista em
medicina tropical, dono do título de notório saber em Leishmaniose, membro da
New York Academy of Science e da resistência à ditadura. Na última matéria da
série O Golpe Militar na Amazônia, A CRÍTICA publica trechos do depoimento de
Marcus Barros, ex-dirigente e um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores
(PT), hoje militante da Rede Sustentabilidade, enfocando principalmente o
binômio saúde x repressão nas cidades amazônicas durante a vigência do regime
militar, e a permanência de doenças trazidas pelas ações autoritárias de
ocupação da Amazônia.
Em seis edições, este jornal ouviu estudiosos e
militantes que são parte da história amazônica mais recente e publicou as
interpretações deles sobre o golpe militar que completa 50 anos e sobre os
efeitos produzidos pelo governo ditatorial na região. São recortes pequenos em
meio a tantas outras vozes que devem ser ouvidas, mas que traduzem um mosaico
onde se imbricam memória e leituras fundamentais para pensar a Amazônia que se
quer construída a partir deste século e que não seja um projeto isolado do
Brasil nem de cima para baixo. Os sofrimentos de tantos, as perdas, as ameaças
e a resistência dos povos amazônicos aparecem em todos os depoimentos dados
aliando-se a uma riqueza cultural ignorada regional e nacionalmente. Espera-se
que reunidos, por meio das inteligências, da solidariedade e da defesa da
democracia, que, em 2015 completará 30 anos de vigência no Brasil, sejam
erguidas as vigas de um plano Amazônia construído na dimensão do coletivo e que
a partir dele o País seja reposicionando.
“Onde eu estava quando ocorreu o golpe militar?
Estava em Manaus, tinha 16 anos. É claro que vi a movimentação das tropas de
Minas Gerais para o Rio de Janeiro, vi Magalhães Pinto (governador de Minas
Gerais, de 1961-1966, primeiro a aderir ao golpe); vi a esperança do Carlos
Lacerda (jornalista, parlamentar e governador do Estado da Guanabara, de
1960-1965) e do JK (Juscelino Kubtichek, presidiu o País de 1956 a 1961) ainda
saírem candidatos, depois do golpe. Vi todas essas cenas com o olhar de
adolescente. Fazia o curso secundário e estava mais longe dos acontecimentos. E
com toda sinceridade, digo que vi pouca movimentação daqueles da minha faixa
etária àquela altura”.
“Vi assustado o Abraham Lincoln Gordon (embaixador
dos EUA no Brasil, no período de 1961 a 1966) mostrar com toda arrogância o que
os EUA poderiam fazer pelo Brasil. Me assustava aquele general (refere-se a
Vermon Walters, militar que tinha ligações com o Brasil desde 1943), amigo do
Castelo Branco que foi para o Vietnã, e quando o Castelo Branco morreu (em 18
de julho de 1967), ele mandou rezar uma missa no Vietnã”.
“Em 1968, quatro anos depois, eu era um jovem de 20
anos e estava na Faculdade de Medicina, em Manaus. Faço aqui recorte porque dos
16 aos 18 anos, sirvo o Exército. Fiz o NPOR (Núcleo Preparatório para Oficiais
da Reserva) e me transformei num oficial da Reserva do Exército brasileiro,
aquele que dominava o Brasil na primeira fase da ditadura. Aos 18 anos eu
estava no corpo da tropa fazendo exercícios no Cigs (Centro de Instruções de
Guerra na Selva, criado em 1964 e dois anos depois dava início aos
treinamentos)”.
“Entre os 16 e 17 anos, não me recordo muito do
sistema repressivo na Amazônia, me lembro bem do combate aos militantes do PCB
(Partido Comunista Brasileiro); me lembro da prisão do Arlindo Porto
(jornalista, ex-presidente do Sindicato dos Jornalistas do Estado do Amazonas,
deputado cassado), do Sidio, do Belarmino Marreiro, do Amazonino Mendes (líder
estudantil, ex-governador do Amazonas, ex-senador, ex-prefeito de Manaus) para
citar alguns. Esses atos mostravam que a coisa não era para brincar e sim para valer”.
O estudante de medicina descobre a repressão“Meu
ingresso na Faculdade de Medicina é um dado importante. Ali havia certo
burburinho, as coisas não aconteciam com tranquilidade. No segundo ano de
faculdade, um marco na minha vida que irá me levar a entender todo o processo
que estava acontecendo para iniciar meu processo de desalienação e olhar para o
Brasil torturado. Aconteceu um seminário no qual o governo dos EUA faz uma
seleção nacional dos que eles chamaram de ‘líderes em potencial no Brasil’. Eu
tinha 20 para 21 anos. Foram selecionados 10 brasileirinhos que tinham certa
ascendência sobre o coletivo, entre eles, eu. Minha entrevista foi na sede do
IBEU (Instituto Brasil-Estados Unidos). Os selecionados passaram três meses na
Universidade de Los Angeles (USLA), na Califórnia, participando do Brazilian
Leadership Seminary. Ali convivi com outras lideranças nacionais, discutindo,
por exemplo, o papel dos EUA no Brasil. O golpe já tinha sido dado, o governo
da ditadura estava instalado, e eles nos juntaram. Era o ano de 1969, o
processo no Brasil estava radicalizado, a guerra no Vietnã em plena execução e
10 jovens brasileiros estão na USLA. Era como se eles dissessem para nós: -
Olha o Brasil está sob ditadura pesada, estão torturando as pessoas. Em Manaus,
fizemos um movimento em plena ditadura, foi um cordão rodeando o prédio da
Faculdade de Medicina porque não tinha microscópio. A ditadura se assustou com
aquilo. Prendeu uns colegas e já, no primeiro dia, apareceu um dedo duro
(questionado quem era, Marcus Barros diz que ele já morreu e não cita o nome).
Aí é um momento em que começamos a sentir a ditadura e a repressão dentro da
sala de aula. É quando vem a minha reação a isso pelas disputas pelo diretório
estudantil”.
Lugar para mobilizar as tropas
“O que foi o golpe militar? Na Amazônia, ele começa
pelo dístico ‘Integrar para não entregar’. A região era altamente estratégica e
precisava de mobilização das tropas. O que eles fizerem para executar esses
projetos? Fizeram caminhos de infraestrutura para mobilizar as tropas, com
obras do tipo Transamazônica, projetos como o desastre da Hidrelétrica de
Balbina, no Município de Presidente Figueiredo. Quando presidi o Ibama ( de
2003 a 2007), vi que hidrelétrica bem pequeninha produzia o dobro de Balbina.
Como médico, vi os projetos produzindo adoecimento e mortes na Amazônia. Uma
das coisas que me chocaram foi a destruição das aldeias dos waimiri-atroari. Eu
acompanhei o Egydio (Schwade, missionário, um dos fundadores do Conselho
Indigenista Missionário, Cimi) e a Doroty (missionária educadora e indigenista,
mulher de Egydio), alfabetizando os índios e enquanto a ditadura matava os
índios com napalm (armamento militar desenvolvido na segunda guerra mundial).
Os índios eram metralhados. E isso era desenvolvimento! Era a ação para abrir
caminho da Torquato Tapajós até Boa Vista (RR) e de lá à Venezuela porque o
Suriname ameaça a ideologia da segurança nacional traduzida na mobilização das
tropas no interior da região”.
A Igreja ergue a tenda do apoio
Na Amazônia, iniciava um movimento junto à Igreja
Católica, muito próximo de um cara chamado Dom Moacyr Grechi, uma figura muito
significativa nesse processo de apoio, de abrigo à resistência e de espaço para
a denúncia do que estava ocorrendo. Eu ia pro Acre, para a juntada dos
camponeses, lá com Chico Mendes e com o Raimundo Cardoso que continuava numa
militância pesada. Estava formado e tinha 27 anos. Queria prestar atenção aos
surtos de malárias nessa região, na estrada Porto Velho–Rio Branco, onde havia
um projeto de assentamento chamado ‘Padre Peixoto’.
http://acritica.uol.com.br/noticias/Manaus-Amazonas-Amazonia-Ditadura-doencas-mortes-Amazonia_0_1115288464.html
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