Sobre práticas de investigação e estudos avançados
O livro que
vem a público pela responsabilidade editorial da Universidade Federal
do Amazonas (Ufam) e de seus idealizadores/organizadores bem ilustra as
práticas de investigação e de estudos avançados entre as agendas de
pesquisas na área de humanidades.
O emblemático título é uma síntese de abordagens interdisciplinares, de múltiplas influências teórico-metodológicas, de distintos campos disciplinares e de diversas temáticas que se reúnem em torno de pensar e repensar a noção de fronteira. Posta nos limites e intersecções entre o conhecimento científico e os saberes produzidos pela cultura, a noção de fronteiras se expande além dos marcos conceituais de áreas e disciplinas. Ao unificar construções formais e vivenciais aos desafios contemporâneos da inteligência, o livro também tem o propósito de expor a presença de uma rede de relações de pesquisadores distribuídos em universidades e institutos de pesquisas da Tríplice Fronteira que integram instituições ligadas pelo processo de interiorização do conhecimento universitário. Esses resultados são visíveis mas merecem ser sublinhados; indicam lugares de enunciação e de formação pelo modo em que se articulam e pela problemática eleita.
A categoria fronteira emerge no livro com a função operatória de aprofundar a reflexão da Amazônia em sua complexidade, singularidade, historicidade, identidade, representação, estrutura simbólica, territorialidade, tradição, modernidade, diferença, diversidade, desigualdade, ecologia política, cidade, floresta, multiculturalismo, globalização.
A tessitura de abordagens tão densas e aparentemente díspares ganha visibilidade na orquestração de um propósito em construção: ilustrar os interesses que movem a abordagem de pesquisa de seus autores por meio do diálogo que a difusão científica propicia, e, ao mesmo tempo, delinear uma atitude intelectual que só a interdisciplinaridade permite, tal seja a de submeter construções de várias origens disciplinares ao olhar contemporâneo da pesquisa que elege a Amazônia como foco.
O texto um, Casos de “roubo de sombra” em fronteiras interétnicas: sofrimento mental no Baixo Amazonas, encabeçado por Renan Albuquerque Rodrigues, revisita a tradição antropológica brasileira de Eraldo Maués em A ilha Encantada, e Eduardo Galvão em Santos e Visagens, em uma eloquente interpretação do conflito de culturas das populações amazônicas com as formas e processos de imposição do modo de vida homogeneizador do capitalismo. A urbanização nas áreas mais profundas da floresta, e de cidades de países diferentes, no caso o Brasil, a Colômbia e o Peru, são também um fenômeno perturbador, gerador de sofrimento físico e mental que demanda estratégias da medicina e dos saberes tradicionais em modos de intervenção complementares possíveis. Terras indígenas, povoados, comunidades tradicionais das localidades interioranas recebem pressões de várias ordens que resultam em quadros dissociativos que desafiam o entendimento do corpo e da mente. Ao situar o tema no ambiente da fronteira entre os mundos da tradição e da volatilidade contemporânea da urbanização predatória, os autores põem problemas advindos das relações transitórias que interferem na construção histórica de identidades coletivas.
O texto dois, Cultura e identidade na tríplice fronteira Brasil, Colômbia e Peru, de Michel Justamand, é exemplar na complementaridade da abordagem anterior e na ênfase do lugar da cultura nas construções contínuas de estratégias de composição de identidades no Alto Solimões. O artigo demonstra como o processo de destituição dos saberes locais tenta desqualificar e minimizar a presença das culturas indígenas nas sociedades da região, assim como ignorar a diversidade de formas tradicionais de adaptação humana nos biomas amazônicos.
Do mesmo modo, o terceiro texto, Por uma ecologia política do mundo da vida e da formação da modernidade na Amazônia, de Camilo Torres Sanchez, compõe a engenharia das escolhas como um desafio que se agrega aos demais em apresentar diferentes dimensões em que a Amazônia ganha concretude no Alto Solimões; o mundo da vida e a modernidade resumem a complexidade do diálogo entre a tradição e as condições sociais e culturais contemporâneas.
É salutar identificar instigações que o texto quatro, Dinámicas territoriales de las ciudades amazónicas: elementos teóricos para sucomprensión, de Nohora Carvajal Sánchez, faz sobre as pesquisas disciplinares que tomam os espaços e os lugares da Amazônia como preocupação de exame de dinâmicas territoriais isoladas dos processos de globalização. O que a autora denomina de lacunas de formulação, seria, possivelmente, isolamento disciplinar em um diálogo interno de expertises da mesma área e de um mesmo perfil epistêmico? Um chamamento ao debate emerge das páginas deste livro, neste e nos demais artigos.
É indispensável que a leitura atenta articule a sequência dos textos com o crescente exercício em que os sujeitos autores incorporaram suas reflexões e exigências teóricas das pesquisas realizadas. Ao mesmo tempo, destaca-se a inteligência que emerge dos grupos de pesquisa institucionalmente organizados no Amazonas e nos países vizinhos, uma emergente cultura de pesquisa entre as IES da região que assume o compromisso do debate interno de ideias e paradigmas, ao mesmo tempo em que discute a validação de pontos de vista e dos modos de apreender as temáticas amazônicas.
Esta atitude intelectual revela outro traço marcante deste livro. A presença de redes de pesquisa que têm a função de formadoras de novos olhares. A obra articula instituições universitárias dos três países com uma coerência de problemática que toma a Amazônia em recorte amplo, mas sob o princípio de explicação e compreensão da indissociabilidade das representações da relação entre natureza e cultura, a presidir o eixo central do diálogo entre os autores e seus temas particulares, sem prejuízo à unidade proposta. Mais um mérito a atribuir à iniciativa de organização deste livro, também revelador de possibilidades que a pós-graduação abre àqueles que desafiam as fronteiras institucionais, políticas e disciplinares de produzir conhecimento na fronteira.
Manaus, julho de 2016.
Profa. Dra. Marilene Corrêa da Silva Freitas
Professora-orientadora
e pesquisadora dos Programas de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na
Amazônia (Ufam), Sociologia (Ufam) e Agricultura no Trópico Úmido
(Inpa) Membro por Notório Saber do Instituto Mamirauá (IDSM)
SUMÁRIO
Casos de “roubo de sombra” em fronteiras interétnicas: sofrimento mental no Baixo Amazonas
Renan Albuquerque, Ricardo Alexino Ferreira
Júlio Cesar Schweickardt, Maria Audirene Cordeiro
Cultura e identidade na tríplice fronteira Brasil, Colômbia e Peru
Michel Justamand
Por uma ecologia política do mundo da vida e da formação da modernidade na Amazônia
Camilo Torres Sanchez
Dinámicas territoriales de las ciudades amazónicas: elementos teóricos para su comprensión
Nohora Carvajal Sánchez
História e memória da origem do bairro Paulo Corrêa, Parintins/AM
Gilciandro Prestes de Andrade, Júlio Cláudio da Silva,
Renan Albuquerque
Nicodemos Sena: um intérprete da Amazônia
Iza Reis Gomes Ortiz, Gabriel Arcanjo Santos de Albuquerque
O mundo da tecnociência em desencanto: ensaio hermenêutico sobre mitologia amazônica
Denison Silvan
Cidades na Amazônia e sistemas locais territoriais: novas mediações urbanas e ordenamento territorial
Estevan Bartoli, Eliseu Savério Sposito
Projeto ecopolítico pedagógico e os temas transversais de desenvolvimento sustentável na educação amazônica
Josenildo Santos de Souza, Camilo Torres Sanchez
Germán Palacio Castañeda
Las trampas del discurso global en la Amazonia colombiana
Enric Cassú-Camps
Políticas de saúde e conhecimentos tradicionais na Amazônia: o uso de plantas medicinais
Alexsandro Melo Medeiros
A transmutação das formas de trabalho na Amazônia Brasileira (1616 a 1750) e a acumulação do capital na Europa
Geraldo Magela Daniel Júnior, Maria Ariádina Cidade Almeida
Educação escolar Yanomami
Hellen Cristina Picanço Simas, Regina Celi Mendes Pereira
Correlações entre artes plásticas e cultura amazônica nos anos 1960
Mariene Mendonça de Freitas, Renan Albuquerque