José Alcimar de Oliveira*
01. Há 50 anos, num debate na Rádio de Hessen, precisamente no dia 14
de abril de 1968, Theodor Adorno (imagem destacada), ao tomar a
barbárie como objeto de reflexão filosófica e pedagógica, chegava a
admitir a possibilidade de reordenar, se lhe fosse possível, todos os
objetivos da política educacional a partir dessa prioridade: educar
contra a barbárie. Mas a barbárie a que se referia Adorno não era aquela
comumente associada ao ancestral estado de natureza tal como, a
propósito, escrevera Hobbes, mas a barbárie produzida e afirmada pelo
devir da própria civilização do século no qual se inscreveu a trajetória
de vida e pensamento do autor da Dialética Negativa. Para Adorno, a
barbárie é a contraface do iluminismo fraudado. É o iluminismo decaído e
convertido num abrangente processo de “mistificação das massas” por
meio do que ele, juntamente com Horkheimer, denominava de “indústria
cultural”. Inscrita na cultura do mais elevado progresso técnico, a
indústria cultural confere à barbárie o paradoxal estatuto de
civilização.
02. A barbárie do estado da natureza cedeu lugar à natureza do Estado
de barbárie. O sociometabolismo da civilização do capital, por meio da
razão técnica, imprimiu na natureza e na cultura a marca da barbárie
civilizada. É um devir reverso. O caminho do progresso, da otimista
evolução hegeliana do espírito, pelo qual a humanidade seguiria do
patamar do sensível ao mais elevado estágio da consciência (o espírito
absoluto), momento em que a civilização poderia apreender-se a si mesma
sob a forma de conceito, parece ter entrado em regressão incontornável. O
estado de agressão primitiva que a civilização imaginava ter posto em
contenção pela mediação do mundo da cultura retorna potencializado pela
mesma cultura que pretendera superá-lo. A cultura, por meio de sua
dominante natureza industrial e da técnica tomada como fim, alterou e
acelerou o ritmo natural do que antes se classificava como barbárie.
03. O que é, afinal, a barbárie? Para Adorno o conceito de barbárie
pode ser simplificado pela ideia de descompasso entre possibilidade
formal e substantiva no interior da esfera dita civilizada. “Entendo por
barbárie algo muito simples, ou seja, que estando na civilização do
mais alto desenvolvimento tecnológico, as pessoas se encontrem atrasadas
de um modo peculiarmente disforme em relação a sua própria
civilização”. Como explicar na Manaus do século XXI, tão familiar às
tecnologias digitais, que a maioria de seus habitantes tenham de
conviver com indicadores sociais tão próximos da insalubridade do
Medievo? Ao contrário de Sartre, que por aqui passou em 1960, Adorno
seguramente nunca incluiu Manaus em seu roteiro, nem geográfico, nem
ideológico. Mas admito que ele não reprovaria o exemplo relacional a que
recorri. É possível dissociar cultura e barbárie na civilização do
capital, e na capital do capital sem controle, na Manaus em que vivo ou
tento sobreviver, ou em Brasília, capital do poder, em que todos os
poderes estão sob o poder do capital?
04. Penso já encontrar-se pacificada a tese epistemológica e, por
isso, pedagógica de que o conhecimento qualifica demandas. A mesma
cultura que naturaliza a barbárie carrega dentro de si a força do
contraditório e a possibilidade de desnaturalizar as relações
socialmente construídas. José Saramago, cuja literatura é atravessada
pelos dilaceramentos humanos e sociais da civilização do capital,
assumira como referência analítica de sua leitura do mundo o que Marx
havia escrito na Sagrada Família: a crítica da crítica crítica ao
assinalar que se o homem é formado pelas circunstâncias, é igualmente
necessário lutar para humanizar as circunstâncias. Para quem as relações
estabelecidas pela venalidade do capital pertencem à ordem da natureza
será natural a crença – ao contrário do que pensava Walter Benjamin – de
que o modo capitalista de produção morrerá de morte natural. Ao
objetivar o que denominamos de natureza nada do que nos ocorre escapa à
nossa condição de ser social.
05. O mundo da vida do ser social é igualmente herança e tarefa.
Somos inércia e movimento. Ser e dever-ser. É certo que tendemos à
inércia, ao já-feito, ao instituído. Kant admitia ser mais cômodo
instalar-se na menoridade. Por isso, insistia que o projeto de uma razão
esclarecida implicava a ousadia. O sapere aude! Ter coragem de fazer um
uso livre da própria razão. Vício e virtude moram no hábito. Se entre
os dois não há a mediação do contraditório prevalecerá, segundo Hegel, o
hábito como um agir sem oposição. Daniel Bensaïd (1946-2010) conclui
seu escrito irresignado, Os Irredutíveis: teoremas da resistência para o
tempo presente, sob a forma por ele intitulada de “Fermata: a corrente
inflamada da indignação não é solúvel nas aguas mornas da resignação
consensual”. No penúltimo parágrafo dessa conclusão insiste na tese de
que, na verdade, o que nos resta além da modernidade e da
pós-modernidade é “a força irredutível da indignação, que é exatamente o
contrário do hábito e da resignação. Mesmo que ainda se ignore o que
poderia ser a justiça do justo, resta a dignidade e a incondicional
recusa da injustiça”.
06. Sempre sou tomado pela dúvida se de fato é uma herança da
Lusitânia ou uma característica tecida de modo próprio – um movente
idiossincrático (motu próprio) – pelo devir teratológico da formação do
Estado brasileiro a forma a um só tempo eloquente e apartada do
real-de-tantas-misérias em que se converteu e se enredou a justiça no
Brasil, tanto no nível do ser quanto do dever-ser. O Estado brasileiro é
uma poderosa e eficiente máquina legiferante. Guardadas as necessárias
medidas, a crítica de Nietzsche à filosofia socrática por força de sua
desmedida “vontade de verdade” pode ser aplicada ao Estado brasileiro –
desde as mais altas até a mais primária das instâncias – em relação à
sua compulsiva vontade de lei. Somos o país da abundância de leis contra
a justiça. Nesse caso, ao contrário da sentença latina, quod abundat nocet.
Da lei que fecunda e legitima a permanente associação, com exitosa taxa
de sucesso, entre imposto e impostura. A prevalente eloquência da
pseudojustiça da Casa Grande Senhorial se afirma pelo silêncio e mutismo
dos injustiçados da abrangente Senzala. Forma contemporânea de guerra
justa ou de barbárie civilizada?
07. Ao contrário do inglês, nosso Leviatã não é dado ao chá, mas à
jabuticaba. No seu Contrato só cabe a proteção dos fortes. Aos fracos,
que habitam o andar de baixo, resta somente o que em tese o Leviatã
hobbesiano deveria combater: a guerra de todos contra todos (bellum omnium contra omnes).
A justiça fraca com os fortes se mostra invariavelmente forte e injusta
contra os fracos. A justiça da classe que impõe seu arbítrio e domínio
sobre a classe que vive do trabalho. Segundo Adorno, dever-se-ia
submeter à crítica “um conceito tão respeitável como o da razão de
Estado, para citar apenas um modelo: na medida em que colocamos o
direito do Estado acima dos de seus integrantes, o terror já passa a
estar potencialmente presente”. Caberia sempre voltar à sabedoria da
indagação de Cícero: o que é, na verdade, um Estado, senão uma sociedade
de direito? Quid est enim civitas nisi iuris societas? Ou ainda sobre a eloquente falta de justiça, ao assinalar que “um magistrado é uma lei falante, e a lei, um magistrado mudo. Magistratum legem esse loquentem, legem autem mutum magistratum.
*José Alcimar de
Oliveira, professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal
do Amazonas, base da ADUA – S. Sind., filho dos rios Solimões e
Jaguaribe, iniciou o curso primário no interior de Jaguaruana, CE.
Em Manaus, AM, 05 de maio de 2018.
Foto: Reprodução/Internet/http://cultura.culturamix.com/personalidades/filosofos/adorno-theodor