PARA ALÉM DE UMA
EDUCAÇÃO DOMESTICADORA: Um Diálogo com
Noam Chomsky
Donaldo Macedo
University of
Massachussets
Boston, USA
RESUMO
Nessa
entrevista, Noam Chomsky aborda a temática da educação e defende a idéia de que
as escolas deveriam ser espaços que envolvessem os alunos na prática da democracia.
Em uma forte crítica ao sistema educacional estadunidense, afirma que este
tem sido um
espaço de doutrinação da juventude. Insiste ainda que o mito da objetividade
tem favorecido a manutenção dos grupos dominantes. Falando sobre o que
as escolas
poderiam ser, declara que um bom professor sabe que a melhor maneira de ajudar
os alunos a aprender é deixá-los descobrir a verdade por eles próprios. Segundo
Chomsky, o verdadeiro conhecimento vem através da descoberta da verdade e não através
da imposição de uma verdade oficial interesses das grandes corporações.
Abstract
In this interview, Noam Chomsky deals with the issue
of education and defends the idea
that schools should be spaces in which students should
experience democracy. In his strong critique of the educational system in the
US, he mantains that this has been a space of youth indoctrination. He insists
that the myth of objectivity has been favoring the insterests of the dominant
groups. Speaking on how schools could be, he declares that a good teachers
knows that the best way of helping students to learn is to let them learn the
truth by themselves. According to Chomsky, true knowledge comes from finding
the truth and not from the imposition of big corporations’ oficial truth.
Entrevista com
NOAM CHOMSKY
Donaldo Macedo –
Há
alguns anos, fiquei intrigado com um episódio ocorrido na Boston Latin School.
David Spritzler, um aluno de doze anos, sofreu um processo disciplinar por se
ter recusado a recitar o Juramento de Fidelidade (Pledge of AllegianceNT1), juramento
que ele considerava “uma exortação hipócrita do patriotismo” uma vez que não
existe “liberdade e justiça para todos”. O que lhe quero perguntar é por que é
que um rapaz de doze anos consegue perceber a hipocrisia do juramento de fidelidade,
e o seu professor e os administradores da escola não? Eu acho
desconcertante
que professores, que pela própria natureza da sua função se deveriam considerar
intelectuais, não sejam capazes ou se recusem conscientemente a ver o que é tão
óbvio para alguém tão jovem.
Noam Chomsky – Isso não é
assim tão difícil de compreender. O que você acabou de descrever é um sinal do
grau de enraizamento da doutrinação nas nossas escolas, que leva a que unia
pessoa instruída não seja capaz de entender idéias elementares capazes de serem
compreendidas por qualquer criança de doze anos.
Donaldo Macedo: Eu acho
desconcertante que um professor altamente instruído e um
diretor de uma
escola estejam dispostos a sacrificar o conteúdo do Juramento de Fidelidade
para imporem obediência, ao exigirem que um aluno recite o Juramento de
Fidelidade.
Noam Chomsky – Eu não considero
isso nada desconcertante. Na realidade, o que aconteceu com David Spritzler é o
que se espera das escolas, que são instituições dedicadas à doutrinação e à
imposição de obediência. Longe de criarem pensadores independentes, ao longo da
história as escolas sempre tiveram um papel institucional num sistema de controle
e coerção. E, uma vez convenientemente educado, o indivíduo foi socializado de
um modo que dá suporte à estrutura de poder que, por seu lado, o recompensa
generosamente.
Vejamos o
exemplo de Harvard. Aí os estudantes não se limitam a aprender matemática. Aprendem
também o que é esperado de um graduado de Harvard no que diz respeito ao seu comportamento
e ao tipo de perguntas que nunca se devem fazer. Aprendem as sutilezas das
recepções, as formas de se vestir mais adequadas e como falar com sotaque de
Harvard.
Donaldo Macedo – E também de
como se mover no seio de uma classe particular e descobrir as metas, os
objetivos e os interesses da classe dominante.
Noam Chomsky – Sim. Neste caso
existe uma diferença fundamental entre Harvard e o MIT. Apesar de se poder
caracterizar o MIT seguramente como sendo mais de direita, é uma instituição
muito mais aberta que Harvard. Existe um adágio sobre Cambridge que retrata
essa diferença: Harvard treina pessoas para governar o mundo, o MIT treina as
que o fazem funcionar. O resultado é que a preocupação de controle ideológico é
muito menor no MIT, havendo mais espaço para o pensamento independente. A minha
situação nessa instituição é prova do que acabei de dizer. Eu nunca senti
qualquer interferência no meu trabalho ou ativismo político. Dito isto, eu não
considero que o MIT seja um trampolim para o ativismo político. Ainda está
subjugado a um papel institucional de evitar uma boa parte da verdade acerca do
mundo e da sociedade. Caso contrário, se ensinasse a verdade, não sobreviveria
muito tempo. Como não ensinam a verdade sobre o mundo, as escolas têm que
martelar na cabeça dos estudantes até lhes impingir a propaganda sobre a
democracia. Se as escolas fossem realmente democráticas, não seria necessário
bombardear os estudantes com banalidades acerca da democracia. Estes agiriam e
comportar-se-iam de uma forma simplesmente democrática, e nós sabemos que isso
não acontece. Habitualmente, quanto maior é a necessidade de falar sobre os
ideais da democracia, menos democrático é o sistema. Este é um dado bem
conhecido pelos políticos e por vezes estes nem sequer se esforçam por
escondê-lo. A Comissão Trilateral NT2 referiu-se às escolas como “instituições”
responsáveis pela “doutrinação dos jovens”. A doutrinação é necessária porque
as escolas são, de um modo geral, concebidas para apoiar os interesses do
segmento dominante da sociedade, das pessoas detentoras da riqueza e do poder.
Numa fase inicial da educação, as pessoas são socializadas de modo a
compreenderem a necessidade de apoiar a estrutura do poder, com as corporações
em primeiro plano – a classe empresarial. A lição aprendida na socialização
através da educação é que se não se apoiar os interesses dos detentores da riqueza
e do poder, não se sobrevive por muito tempo. É-se excluído do sistema ou marginalizado.
E as escolas são bem sucedidas na “doutrinação da juventude” – para usar as
palavras da Comissão Trilateral – ao operarem num enquadramento propagandístico
que consegue distorcer ou reprimir idéias e informações indesejadas.
Donaldo Macedo –
Como
é possível que esses intelectuais que operam numenquadramento propagandístico
consigam escapar incólumes com a sua cumplicidade para com as falsidades que
disseminam a serviço dos poderosos interesses?
Noam Chomsky – Eles não se
escapam com nada. Na realidade, estão apenas a prestar um serviço que as
instituições para as quais trabalham esperam deles. E eles, voluntariamente, talvez
inconscientemente, preenchem os requisitos do sistema industrial. É como se contratasse
um carpinteiro e, depois de ele concluir o trabalho para que foi contratado,
lhe perguntasse como é que ele se tinha safado com aquilo. Ele fez o que dele
era esperado. Bem, os intelectuais prestam um serviço semelhante. Fazem o que
deles é esperado ao oferecerem uma descrição razoavelmente exata da realidade
que se adéqua aos interesses da pessoas que detêm a riqueza e o poder – os
donos das instituições a que chamamos escolas e, de fato, da sociedade de um
modo geral.
Donaldo Macedo –
É
claro que historicamente os intelectuais têm tido um papel inglório de apoio ao
sistema doutrinal. Dada a postura pouco honrosa que assumem, poderemos
considerá-los intelectuais no verdadeiro sentido da palavra? Você refere-se com
alguma freqüência a alguns professores de Harvard como “comissários”. Eu também
considero o tempo mais apropriado que intelectual, dada a sua cumplicidade com
a estrutura de poder, e dos seus papéis funcionais de apoio a “valores civilizacionais”
que em muitos casos deram origem a exatamente o oposto: miséria humana,
genocídio, escravatura e exploração em massa das populações.
Noam Chomsky – Do ponto de
vista histórico, tem sido quase exatamente esse o caso. Recuando no tempo até à
época da Bíblia, os intelectuais que mais tarde foram chamados “falsos
profetas” trabalhavam para os interesses específicos de quem estava no poder. Sabemos
que existiam intelectuais dissidentes naquela época, e que esses tinham uma
visão alternativa do mundo. Foram mais tarde chamados “profetas” – uma tradução
dúbia de um mundo obscuro. Esses intelectuais foram marginalizados, torturados
ou exilados. As coisas não mudaram muito na nossa época. Os intelectuais
dissidentes continuam marginalizados pela maioria das sociedades e, em lugares
como El Salvador, são simplesmente chacinados. Foi isso que aconteceu com
arcebispo Romero e os seis intelectuais jesuítas executados por tropas de elite
treinadas [nos EUA], armadas e suportadas pelos nossos impostos. Um jesuíta
salvadorenho comentou acertadamente no seu diário que no seu país Václav Havel (antigo
prisioneiro político que se tomou presidente da Tchecoslováquia), por exemplo,
não teria sido preso; teria sido esquartejado e abandonado à beira da estrada.
Václav Havel, que se tornou no dissidente preferido do Ocidente, recompensou
generosamente os seus apoiadores no Ocidente ao dirigir-se ao Congresso dos EUA
algumas semanas após o assassinato dos seis jesuítas em El Salvador. Em vez de
demonstrar solidariedade para com os camaradas dissidentes em El Salvador, louvou
e enalteceu o Congresso, a quem chamou
de “defensores
da liberdade”. O escândalo é tão óbvio que não precisa de comentário. Um
simples teste mostrará como este escândalo é extraordinário. Consideremos, por exemplo,
o seguinte caso imaginário: um comunista negro americano vai à (então) União Soviética,
pouco tempo depois de seis eminentes intelectuais tchecos terem sido assassinados
por forças de segurança treinadas e armadas pelos russos. Ele dirige-se à Duma,
elogiando os deputados enquanto “defensores da liberdade”. A reação dos intelectuais
e políticos aqui nos Estados Unidos seria rápida e previsível. Ele seria denunciado
por apoiar um regime assassino. Os intelectuais americanos devia perguntar-se por
que razão reagiram com tal êxtase ao incrível desempenho de Havel, que é
bastante comparável a esta situação imaginária. Quantos intelectuais americanos
já leram alguma coisa sobre os intelectuais da América Central assassinados por
exércitos sancionados pelos EUA? Ou ouvido falar de Dom Hélder Câmara – o bispo
brasileiro defensor das causas dos pobres do Brasil? O fato de que a maioria
deles teria dificuldade em dizer os nomes dos dissidentes das tiranias brutais
da América Latina – e de outros locais – apoiados por nós, e cujas “forças da ordem”
são treinadas por nós, oferece um comentário interessante à nossa cultura intelectual.
Os fatos inconvenientes ao sistema doutrinado são sumariamente ignorados como
se não existissem. São simplesmente suprimidos.
Donaldo Macedo –
Esta
construção social do não ver caracteriza esses intelectuais, descritos por
Paulo Freire como educadores que reclamam uma postura científica e que
“poderiamtentar esconder-se no que [eles] consideram a neutralidade da investigação
científica, indiferentes ao modo como as [suas] invenções são utilizadas,
desinteressados até em considerar para quem ou para que interesses estão a
trabalhar”1. Segundo Freire, em nome da objetividade, esses intelectuais “poderiam
tratar a sociedade em estudo como se [eles próprios] não fizessem parte dela.
Na [sua] celebrada neutralidade, [eles poderiam] abordar esse mundo como se usassem
`luvas e máscaras' para não contaminarem nem serem contaminados por ela”2. Eu
acrescentaria que esses intelectuais não só usam “luvas e máscaras”, mas também
viseiras, para evitarem ver o óbvio.
Noam Chomsky – Não sei se
concordo com esse ataque e crítica pós-moderna à objetividade. A objetividade
não é algo que possamos rejeitar. Pelo contrário, deveríamos trabalhar muito
para a abarcar na nossa procura da verdade.
Donaldo Macedo – Não
discordo. A minha crítica da objetividade não pretende rejeitá-la. O que deve
ser questionado é a capa de objetividade utilizada por muitos intelectuais para
evitar incorporar nas suas análises fatores inconvenientes e que possam expor a
sua cumplicidade na supressão da verdade ao serviço da ideologia dominante.
Noam Chomsky – Sim. A
pretensão da objetividade enquanto meio de distorção e desinformação a serviço
do sistema doutrinal deve ser firmemente condenada. Essa atitude intelectual é
muito mais facilmente mantida nas ciências sociais, porque os constrangimentos
impostos aos investigadores pelo mundo exterior são muito mais fracos. A
compreensão é muito mais superficial e os problemas a analisar são muito mais
obscuros e complexos. O resultado é que é muito mais fácil ignorar simplesmente
coisas que não se quer ouvir. Existe uma diferença marcada entre as ciências
naturais e as ciências sociais. Nas ciências naturais, os fatos da natureza não
deixam o investigador ignorar com tanta facilidade coisas que entrem em
conflito com crenças favorecidas e é mais difícil perpetuar erros. Uma vez que
nas ciências naturais as experiências são replicadas, é mais fácil expor os
erros. Existe uma disciplina interna que orienta as diligências intelectuais.
Ainda assim, não existe uma garantia clara de que mesmo a mais séria pesquisa
conduza à verdade. Regressemos ao ponto inicial: as escolas evitam verdades
importantes. É da responsabilidade intelectual dos professores – e de qualquer
indivíduo honesto – procurar dizer a verdade. Isto não é, certamente,
controverso. É um imperativo moral procurar e dizer a verdade, na medida das
possibilidades, acerca de coisas relevantes, ao público certo. É uma perda de
tempo dizer a verdade ao poder, no sentido literal das palavras, e o esforço de
o fazer pode freqüentemente ser uma forma de auto-complacência. A meu ver, é
uma perda de tempo e um empreendimento inútil dizer a verdade a pessoas como
Henry Kissinger ou o Presidente do Conselho de Administração da AT&TNT3, ou
outros que exerçam poder em instituições com políticas de coerção – a maioria
deles já conhecem estas verdades. Gostaria de justificar o que acabei de dizer.
Se e quando as pessoas que exercem o poder nas respectivas funções
institucionais se dissociam do ambiente institucional e se tornam seres
humanos, agentes morais, nessa altura podem juntar-se ao resto das pessoas. Mas
não vale a pena dialogar com eles no seu papel de indivíduos detentores de
poder. É um desperdício de tempo. Vale tanto a pena dizer a verdade ao poder quanto
ao pior e mais criminoso dos tiranos, que também será um ser humano, independentemente
de quão terríveis sejam as suas ações. Dizer a verdade ao poder não é uma
vocação particularmente honrosa. Deve-se procurar um público que interesse.
Para os professores, esse público são os estudantes. Estes não devem ser vistos
como uma mera audiência, mas como fazendo parte de uma comunidade de interesse
partilhado, na qual esperamos poder participar de um modo construtivo. Não devemos
falar para, mas com. Isso é algo que já se tornou uma segunda
natureza em qualquer bom professor, e também o deveria ser em qualquer escritor
ou intelectual. Um bom professor sabe que a melhor maneira de ajudar os alunos
a aprender é deixá-los descobrir a verdade por eles próprios. Os estudantes não
aprendem por mera transferência de conhecimento através da memorização mecânica
e posterior regurgitação. O verdadeiro conhecimento vem através da descoberta
da verdade e não através da imposição de uma verdade oficial. Isso nunca conduz
ao desenvolvimento do pensamento crítico e independente. Todos os professores
têm a obrigação de ajudar os estudantes a descobrir a verdade e não suprimir
informação e conhecimentos que possam ser embaraçosos para as pessoas ricas e
poderosas que criam, concebem e fazem as políticas das escolas.
Vejamos mais de
perto o que significa ensinar a verdade e as pessoas distinguirem mentiras de
verdades. Eu acho que não é preciso mais do que bom senso, o mesmo bom senso
que nos permite adotar uma posição crítica perante os sistemas de propaganda
das
nações que
consideramos nossas inimigas. Já sugeri antes que os eminentes intelectuais estadunidenses
não seriam capazes de nomear nenhum dissidente conhecido das tiranias da esfera
do nosso controle, por exemplo El Salvador. Contudo, esses mesmos intelectuais
não teriam qualquer dificuldade em fornecer uma longa lista de dissidentes da
antiga União Soviética. Também não teriam qualquer problema em distinguir
mentiras da verdade e em reconhecer as distorções e perversões que são usadas
para proteger a população da verdade nos regimes inimigos. As competências
críticas que eles utilizam para desmascarar as falsidades propagadas nas nações
a que chamam “hostis” desaparecem quando se trata de criticar o nosso próprio
governo e as tiranias por nós suportadas. As classes instruídas têm essencialmente
apoiado o aparelho de propaganda ao longo da história, e quando desvios da doutrina
são reprimidos ou marginalizados, a máquina propagandística tem geralmente grande
sucesso. Isso foi bem compreendido por Hitler e por Stalin, e até hoje tanto sociedades
abertas como fechadas procuram e recompensam a cumplicidade da classe instruída.
A classe
instruída tem sido denominada uma “classe especializada”, um pequeno grupo de
pessoas que analisam, executam, tomam decisões e gerem as coisas nos sistemas político,
econômico e ideológico. A classe especializada é geralmente composta por uma pequena
percentagem da população; eles têm de ser protegidos do grosso da população, a quem
Walter Lippmann chamou de “rebanho desnorteado”. Esta classe especializada leva
a cabo as “funções executivas”, o que significa que são eles que pensam,
planejam e percebem os “interesses comuns”, que para eles são os interesses da
classe empresarial. A grande maioria das pessoas, o “rebanho desnorteado”,
devem funcionar na nossa democracia como “espectadores”, não como
“participantes na ação”, de acordo com as crenças liberais democráticas que
Lippmann articula com clareza. Na nossa democracia, de vez em quando é
permitido aos membros do “rebanho desnorteado” participar na aprovação de um
líder através daquilo a que chamamos “eleição”. Mas, uma vez confirmado um ou outro
membro da classe especializada, devem retirar-se e voltar a ser espectadores.
Quando o
“rebanho desnorteado” tenta ser mais do que simples espectadores, quando as
pessoas tentam tomar-se participantes nas ações democráticas, a classe
especializada reage àquilo que chama “crise de democracia”. E por isso que existiu
tanto ódio entre as
elites dos anos
1960, quando grupos de pessoas que historicamente sempre foram marginalizadas
se começaram a organizar e a interferir com as políticas da classe especializada,
em particular na guerra do Vietnã, mas também na política social interna.
Uma das formas
de controlar o “rebanho desnorteado” é seguir a concepção da Comissão
Trilateral das escolas enquanto instituições responsáveis pela “doutrinação dos
jovens”. Os membros do “rebanho desnorteado” devem ser profundamente doutrinados
nos valores e interesses corporativos privados e controlados pelo estado.
Aqueles que são bem sucedidos em instruir-se nos valores da ideologia dominante
e que provam a sua lealdade ao sistema doutrinal podem tornar-se parte da
classe especializada. O resto do “rebanho desnorteado” deve ser mantido na
linha, longe de problemas e mantendo-se sempre, quanto muito, espectadores da
ação e distraídos das verdadeiras questões que interessam. A classe instruída
considera-os demasiado estúpidos para gerirem os seus próprios assuntos, e por isso
precisam da classe especializada para se assegurarem de que não terão a
oportunidade de agir com base nos seus “equívocos”. Segundo a classe
especializada, os 70 por cento das pessoas que consideram que a Guerra do Vietnã
foi moralmente errada devem ser protegidos dos seus “equívocos” ao oporem-se à
guerra: eles devem acreditar na opinião oficial de que a Guerra do Vietnã foi
apenas um erro.
Para proteger o
“rebanho desnorteado” de si próprio e dos seus “equívocos”, numa sociedade
aberta a classe especializada precisa de se virar cada vez mais para a técnica
da propaganda, para a qual se usa o eufemismo “relações públicas”. Por outro
lado, em estados totalitários o “rebanho desnorteado” é mantido no lugar por um
martelo que paira sobre as suas cabeças, e se alguém se desvia, tem sua cabeça
esmagada. Uma sociedade democrática não se pode apoiar na força bruta para
controlar a população. Por isso, é preciso confiar mais na propaganda como
forma de controlar a mente pública. A classe instruída toma-se indispensável na
diligência de controle da mente e as escolas têm um papel importante neste
processo.
Donaldo Macedo –
As
suas declarações sugerem, e eu concordo, que nas sociedades abertas a censura
está, em grande parte, integrada no tecido do qual depende a propaganda e a sua
tentativa de “controlar a mente pública”. Porém, na minha perspectiva, a
censura numa sociedade aberta difere substancialmente da forma de censura
exercida em sociedades totalitárias. O que eu tenho observado nos Estados Unidos
é que a censura não só se manifesta de um modo diferente, mas também que depende
de uma forma de auto-censura. Quais são os papéis dos meios de comunicação
social e da educação neste processo?
Noam Chomsky – Aquilo que
você chamou de auto-censura começa em muito tenra idade, através de um processo
de socialização que é também uma forma de doutrinação que funciona contra o
pensamento independente, em favor da obediência. As escolas funcionam como um
mecanismo para essa socialização. O objetivo é evitar que as pessoas façam as perguntas
que interessam acerca de questões importantes que as afetam diretamente, a elas
e a outros. Nas escolas não se aprende apenas conteúdos. Como já mencionei, se
quiser tornar-se num professor de matemática, não basta aprender muita
matemática.
Adicionalmente é
preciso aprender como se comportar, como se vestir de um modo apropriado, que
tipos de questões podem ser levantadas, como encaixar (ou seja, como se adaptar),
etc. Se mostrar demasiada independência e questionar o código da sua profissão com
demasiada freqüência, o mais provável é ser excluído do sistema de privilégios.
Assim,
rapidamente aprende que, para ter sucesso, tem que servir os interesses do
sistema doutrinal. Tem que ficar calado e instilar nos seus estudantes as
crenças e doutrinas que servirão os interesses daqueles que detêm o verdadeiro
poder. A classe empresarial e os seus interesses privados são representados
pelo elo estado-empresa. Mas as escolas estão longe de ser o único instrumento
de doutrinação. Outras instituições se conjugam para reforçar o processo de
doutrinação. Vejamos aquilo que nos impingem pela televisão.
Pedem-nos para
assistirmos a um conjunto de programas vazios, concebidos como entretenimento,
mas desenhados para desviar a atenção das pessoas dos seus verdadeiros problemas
ou de identificarem as fontes dos seus problemas. Assim, esses programas vazios
socializam o espectador, para que se torne num consumidor passivo. Uma das formas
de gerir uma vida frustrada é comprar cada vez mais coisas. Os programas
exploram as necessidades emocionais das pessoas e mantêm-nas desligadas das
necessidades dos outros. A medida que os espaços públicos se desintegram, as
escolas e os poucos espaços públicos que restam trabalham para tornar as
pessoas boas consumidoras.
Donaldo Macedo: Isso
ajusta-se à super glorificação do individualismo.
Noam Chomsky – Não concordo.
Não o vejo como uma forma de individualismo. O individualismo, no seu melhor,
exige alguma forma de responsabilidade pelas próprias ações. Esta forma vazia
de entretenimento encoraja as pessoas a submeter-se e deixar-se
guiar
essencialmente pela emoção e pelo impulso. O impulso é consumir mais, ser um
bom consumidor. Nesse sentido, os meios de comunicação social, as escolas e a
cultura popular dividem-se entre aqueles que possuem racionalidade, e são os
que planejam e tomam as decisões na sociedade, e o resto das pessoas. E para
terem sucesso, aqueles que possuem racionalidade e se juntam à classe
especializada têm que criar “ilusões necessárias” e “maniqueísmos
emocionalmente potentes”, de acordo com as palavras de Reinhold Niehbur, para
proteger o “rebanho desnorteado” – o simplório ingênuo – da importunação da
complexidade dos problemas reais, que de qualquer modo não conseguiriam
resolver. O objetivo é manter as pessoas isoladas das verdadeiras questões e
umas das outras. Qualquer tentativa de organizar ou estabelecer ligações com o
coletivo tem de ser esmagada. Tal como nos estados totalitários. a censura é
muito real nas sociedades abertas, apesar de assumir formas diferentes.
Perguntas que são ofensivas ou embaraçosas para o sistema doutrinal são
interditadas. As informações inconvenientes são suprimidas. Não é preciso ir muito
longe para se chegar a esta conclusão, basta analisar de uma forma honesta
aquilo que é noticiado nos meios de comunicação social e aquilo que é deixado
de fora; tentar entender honestamente qual a informação permitida nas escolas e
qual a proibida. Qualquer pessoa com uma inteligência média consegue perceber
como os meios de comunicação social manipulam e censuram a informação que
consideram inconveniente. Pode dar algum trabalho descobrir as distorções e a
ocultação da informação. Mas a única coisa que é preciso é o desejo de conhecer
a verdade.
Não existe razão
para os intelectuais não conseguirem tomar a mesma posição perante os nossos
protetorados na América Latina que tomam perante os domínios inimigos. Para isso
basta a vontade de utilizar a mesma inteligência e bom senso que utilizam ao
analisar e dissecar as atrocidades cometidas pelos nossos inimigos. Se as
escolas estivessem ao serviço do público em geral, estariam fornecendo às
pessoas técnicas de auto-defesa, mas isso significaria ensinar a verdade acerca
do mundo e da sociedade. Iriam dedicar-se com mais energia e aplicação
exatamente ao tipo de coisas que estamos discutindo, de modo que as pessoas que
cresceram numa sociedade aberta e democrática desenvolveriam técnicas de auto-defesa,
não só contra o aparelho propagandístico das sociedades totalitárias controladas
pelo Estado, mas também contra o sistema privatizado de propaganda, que inclui
as escolas, os meios de comunicação social, a imprensa que determina o que está
na ordem do dia e as revistas intelectuais, que essencialmente controlam o
empreendimento educativo. Aqueles que exercem o controle sobre o aparelho
educativo deveriam ser referidos como uma classe de “comissários”. Comissários
são os intelectuais que trabalham em primeira linha para a reprodução,
legitimação e manutenção da ordem social dominante, da qual colhem benefícios.
Os verdadeiros intelectuais têm a obrigação de buscar e dizer a verdade acerca
de coisas que são importantes. coisas significativas. Este ponto não se perdeu
junto dos intelectuais do Ocidente, que não têm qualquer problema em aplicar princípios
morais elementares em casos que envolvam inimigos oficiais.
Donaldo Macedo: Isso é uma
forma de moralismo seletivo. Participar nesse moralismo
seletivo também
fornece a esses comissários a base racional para justificar a sua cumplicidade
com aquilo a que Theodor Adorno chamou “recusa teimosa de ver”. Eu vivi em duas
ditaduras muito diferentes, a de António Salazar, em Portugal, e a de Francisco
Franco, na Espanha, e a censura nesses regimes totalitários era crua, inequívoca
e policiada. A experiência que tenho da censura na democracia dos EUA é de que
esta é muito mais difusa e freqüentemente exercida de uma forma subliminar ou
através dos colegas (incluindo os estudantes) no contexto do trabalho. Por
falar em democracia, não é irônico que nos Estados Unidos – um país que se preza
por ser a primeira e mais democrática sociedade do Primeiro Mundo – as escolas
continuem a ser extremamente antidemocráticas? Elas continuam antidemocráticas
não só nas suas estruturas administrativas (por exemplo, os diretores são
nomeados e não eleitos), mas também enquanto locais que reproduzem a ideologia
dominante, que por seu lado desencoraja o pensamento crítico e independente.
Dada a natureza antidemocrática das escolas, como pode a educação estimular o
pensamento crítico em termos de criatividade, curiosidade e necessidades dos
estudantes?
Noam Chomsky – Existiam
alternativas ao atual sistema escolar antidemocrático que acabou de mencionar.
Por exemplo, eu tive a sorte de estudar numa escola baseada em ideais
democráticos, onde a influência das idéias de John Dewey se sentiam fortemente
e onde as crianças eram encorajadas a estudar e investigar enquanto processo de
descoberta da verdade por elas próprias. Qualquer escola que tenha de impor o
ensino da democracia já é suspeita. Quanto menos democrática é uma escola, mais
necessidade tem de ensinar idéias democráticas. Se as escolas fossem realmente
democráticas, no sentido de oferecerem às crianças as oportunidades de terem a
experiência da democracia na prática, não sentiriam a necessidade de as
doutrinar com lugares-comuns sobre a democracia. De novo, eu me sinto um
felizardo por a minha experiência escolar não se ter baseado na memorização de
falsidades sobre quão maravilhosa era a nossa democracia. A influência de Dewey
não se estendeu a todas as escolas, apesar de ele ter sido uma figura eminente
doliberalismo norte-americano e um dos principais filósofos do século XX.
Também me lembro
que, quando moço, fui conselheiro num campo de férias, e presenciei com
freqüência o sucesso de um processo de doutrinação semelhante ao da recitação
do Juramento de Fidelidade que você descreveu há pouco. Lembro-me de ver crianças
emocionando-se muito, a ponto de chorarem, ao recitarem as canções patrióticas hebraicas
que nem sequer compreendiam. Algumas das crianças diziam as palavras completamente
erradas, mas isso não reduzia o seu estado emocional. O verdadeiro ensino democrático
não gira em torno da instilação do patriotismo ou da memorização mecânica dos
ideais da democracia. Nós sabemos que os estudantes não aprendem dessa maneira.
A verdadeira aprendizagem ocorre quando os estudantes são convidados a
descobrir por eles próprios a natureza da democracia e o seu funcionamento.
A melhor maneira
de descobrir como funciona uma democracia funcional é praticá-la. E isso as
escolas não fazem muito bem. Uma boa medida do funcionamento de uma democracia
nas escolas e na sociedade é o grau de aproximação entre a teoria e a
realidade, e é sabido que tanto nas escolas como na sociedade existe um grande
abismo entre as duas.
Em teoria, numa
democracia todos os indivíduos podem participar em decisões que têm a ver com
as suas vidas, determinando como são obtidos e utilizados os recursos públicos,
que política externa a sociedade deveria seguir e assim por diante. Um teste
simples mostrará o abismo entre a teoria, que diz que todos os indivíduos podem
participar nas decisões que envolvem as suas vidas, e a prática, em que o poder
concentrado pelo governo funciona como um limitador da capacidade dos
indivíduos e grupos de gerirem os seus próprios assuntos ou, por exemplo, de
determinarem a forma da política externa que querem adotar.
Tomemos os
presentes bombardeio em Kosovo e no Iraque. A situação em Kosovo antes do
bombardeio de 24 de Março era, no mínimo, terrível. No dia 24 de Março começou
o bombardeio e em poucos dias apareceram milhares de refugiados vindos de Kosovo
e houve um aumento dramático de estupros, matanças em massa e tortura – uma conseqüência
direta e previsível do bombardeio que foi executado com a declarada intenção de
ser um esforço humanitário para proteger a população de etnia albanesa. Bom,
não é preciso um grande esforço para perceber que uma situação que era terrível
se tornou catastrófica depois do bombardeio, que uma situação horrível em
Kosovo acabou ganhando proporções catastróficas depois da “intervenção
humanitária” da OTAN. Seguindo a Declaração Universal de Direitos Humanos, a
OTAN reclamou o direito a uma “intervenção humanitária” para por fim à limpeza
étnica de albaneses. Como podemos ver, os bombardeios da OTAN conduziram
diretamente a um aumento radical na limpeza étnica e da carnificina em Kosovo:
conduziram a um forte aumento dos assassinatos, estupros e tortura de pessoas
de etnia albanesa, o que não constitui grande surpresa. De fato, o comandante
da OTAN, General Wesley Clark, informou imediatamente à imprensa que este seria
um efeito “inteiramente previsível” do bombardeio.
Se fôssemos
aplicar a mesma linha de argumentação que justificou a “intervenção humanitária”
em Kosovo, a OTAN deveria bombardear outros países, por exemplo a Colômbia, e
também um dos seus membros, a Turquia. De acordo com estimativas do Departamento
de Estado dos EUA, a taxa anual de assassinatos políticos praticados pelo
Estado e pelo
respectivo aparelho paramilitar na Colômbia está quase no mesmo nível que em
Kosovo antes dos bombardeios da OTAN, e há aproximadamente um milhão de
refugiados
fugindo dessas atrocidades. Com o aumento da violência nos anos 1990, a Colômbia
se tornou o principal destinatário de armas e treino estadunidenses no
hemisfério ocidental e essa assistência está aumentando sob o pretexto de uma
“guerra contra a droga”, rejeitado por todos os observadores sérios. A
administração Clinton foi particularmente generosa nos elogios ao presidente da
Colômbia, César Gaviria, cuja administração foi responsável por “chocantes
níveis de violência”, de acordo com organizações de defesa dos direitos
humanos.
No caso da
Turquia, a repressão dos curdos nos anos 1990 ultrapassa largamente a escala de
Kosovo antes dos bombardeios da OTAN. Esta atingiu o seu auge em meados da década
de 1990: um índice é a fuga de mais de um milhão de curdos da província para a capital
oficial curda, Diyarbakir, entre 1990 e 1994, à medida que o exército turco devastava
o campo. Em 1994 foram estabelecidos dois recordes: foi o “ano de pior
repressão nas
províncias curdas” da Turquia, segundo relatos in loco de Jonathan Randal, e o
ano em que a Turquia se tomou o “maior importador individual de material de
guerra estadunidense e, assim, o maior comprador de armas do mundo”. Quando
grupos de defesa dos direitos humanos expuseram a utilização de jatos
estadunidenses pela Turquia para bombardear aldeias, a administração Clinton
usou subterfúgios para contornar leis que exigiam a suspensão da entrega de
armamento, tal como fazia na Indonésia e em outros locais. De novo, se
seguíssemos a linha de argumentação da Declaração Universal de Direitos
Humanos, citada pela OTAN como justificação para os bombardeios em Kosovo, a OTAN
teria justificativas mais que suficientes para bombardear Washington.
Vejamos o caso
do Laos. Durante muitos anos, milhares de pessoas, na sua maioria crianças e
camponeses pobres, foram mortas nas planícies de Jarros, no norte de Laos, aparentemente
o cenário do mais violento bombardeio de alvos civis na história – e talvez o mais
cruel. O violento ataque de Washington a uma sociedade de camponeses pobres não
tem nada a ver com as suas guerras na região. O pior período começou em 1968,
quando Washington foi obrigado a iniciar negociações (sob pressões populares e
econômicas), interrompendo o bombardeio sistemático do Vietnã do Norte. Henry
Kissinger e Richard Nixon decidiram então desviar os aviões para o bombardeio
do Laos e do Camboja. As mortes deveram-se às “bombies”, pequenas armas
anti-pessoais muito piores que minas terrestres: foram concebidas
especificamente para matar pessoas sem afetaram caminhões, edifícios etc. A
planície ficou cheia de centenas de milhões destes dispositivos assassinos que,
de acordo com o fabricante, Honeywell, apresentam uma taxa de falha de
detonação de 20 a 30 por cento. Estes números sugerem um controle de qualidade
notavelmente fraco ou uma política de assassinato de civis de ação retardada.
As bombies foram apenas uma fração da tecnologia utilizada, que incluiu mísseis
avançados que penetravam em cavernas onde famílias procuravam abrigo.
Atualmente, a
estimativa é de centenas de baixas anuais provocadas por bombies, podendo
atingir “uma taxa anual de 20.000 acidentes no país”, resultando em morte, em
mais da metade
dos casos, segundo o relato do veterano correspondente na Ásia, Barry Wain, da
edição asiática do Wall Street Journal. Uma estimativa conservadora é, então,
que a crise apenas deste ano que passou é aproximadamente comparável a Kosovo
antes dos bombardeios. Contudo, as mortes estão muito mais concentradas entra
as crianças – mais de metade, segundo as análises publicadas pelo Comitê
Central Menonita que trabalha na zona desde 1977 para reduzir as contínuas
atrocidades.
Os meios de
comunicação social dos Estados Unidos aplaudiram a intervenção da OTAN em
Kosovo para impedir a limpeza étnica dos albaneses, apesar de o bombardeio ter aumentado
tragicamente a limpeza étnica e outras atrocidades. Mas no caso de Laos, em que
somos diretamente responsáveis pelas mortes, a reação dos EUA foi não fazer nada.
E os meios de comunicação social e os comentaristas mantiveram-se calados,
respeitando as normas segundo as quais a guerra no Laos foi considerada uma
“guerra secreta” – ou seja, bem conhecida, mas abafada, como foi o caso do
Camboja a partir de março de 1969. O grau de auto-censura foi extraordinário
nessa altura, tal como é atualmente. A relevância deste chocante exemplo é
óbvia. Enquanto os meios de comunicação social dos EUA exultaram quando o
Tribunal Internacional indiciou Slobodan Milosevic por crimes contra a
humanidade, Kissinger, um dos arquitetos da carnificina no Laos, continua livre
e é celebrado como “perito” cujo “ponto de vista” sobre os bombardeamentos em
Kosovo era ansiosamente buscado pelos meios de comunicação social.
No caso do
Iraque abundam as atrocidades, com civis iraquianos sendo chacinados por uma
forma particularmente maliciosa de guerra biológica. Em 1996, quando
questionada sobre a morte de meio milhão de crianças iraquianas em cinco anos,
a secretária de estado Madeleine Albright comentou na Televisão Pública dos
Estados Unidos que “nós achamos que o preço vale a pena”. De acordo com
estimativas atuais, ainda são mortas cerca de 4.000 crianças por mês e o preço
“ainda vale a pena”.
Uma análise mais
cuidadosa da Guerra do Golfo revela os mesmos princípios condutores da
“intervenção humanitária” ou da intervenção para salvaguardar “democracias” dos
EUA em todo o mundo. Os meios de comunicação social e as classes instruídas
repetem obedientemente as palavras do presidente George Bush de que “a posição
da América é a mesma que sempre foi – contra a agressão, contra aqueles que utilizam
a força para se sobreporem à lei”, apesar de alguns meses antes ele ter violado
os princípios da América “contra a agressão, contra aqueles que utilizariam a
força para se sobreporem à lei” ao invadir o Panamá. O presidente Bush foi o
único chefe de estado a ser condenado pelo Tribunal Mundial pelo “uso indevido
de força” – na guerra dos EUA contra a Nicarágua. A reivindicação de Bush de
“alto princípio” foi uma anedota, já que os Estados Unidos não defenderam
nenhum alto princípio no Golfo, o mesmo valendo para qualquer estado envolvido.
A resposta sem precedentes a Saddam Hussein não se deveu à sua agressão brutal
– foi porque ele pisou os calos errados, tal como Manuel Noriega fizera alguns
anos antes. Ambos eram rufias que já tinham sido amigos do presidente Bush.
Saddam Hussein é
um assassino sem escrúpulos – como era antes da Guerra do Golfo, quando era
nosso amigo e um dos parceiros comerciais preferidos. A sua invasão do Kuwait
foi certamente uma atrocidade, mas não chegou aos pés das atrocidades cometidas
com o apoio dos EUA e chegou ao mesmo nível de muitos crimes semelhantes
levados a cabo pelos Estados Unidos e os seus aliados.
Por exemplo, a
invasão e anexação de Timor-Leste pela Indonésia quase atingiu proporções de
genocídio: um quarto da população (700.000) foi morta, um massacre que excedeu
o de Pol Plot, comparativamente à população, no mesmo número de anos. Tanto os Estados
Unidos como os seus aliados apoiaram estas atrocidades. O ministro dos negócios
estrangeiros australiano justificou o seu consentimento à invasão e anexação de
Timor-Leste dizendo simplesmente que “o mundo é um lugar bastante injusto,
cheio de exemplos de aquisição pela força”. Contudo, quando o Iraque invadiu o
Kuwait, o seu governo denunciou a invasão com uma declaração alto e em bom tom
de que os “países grandes não podem invadir vizinhos pequenos e ficar
incólumes”. As verdadeiras preocupações da política dos EUA no Golfo eram de
que as incomparáveis reservas energéticas do Médio Oriente se mantivessem sob o
nosso controle e que os enormes lucros por elas produzidos ajudassem a suportar
as economias dos Estados Unidos e do seu cliente britânico.
Donaldo Macedo: É realmente
uma constatação triste, a de que apesar de os fatos que
agora relatou
serem tão óbvios, a classe instruída dos EUA, à exceção de uma pequena minoria,
ter sido incapaz de estabelecer as ligações históricas necessárias para
desenvolver uma compreensão rigorosa do mundo. O vice-presidente Dan Quayle
teve uma leitura correta da Guerra do Golfo, ainda que não intencionalmente, ao
descrevê-la como “uma vitória avassaladora para as forças agressoras”. O
presidente Bush foi apanhado num lapso freudiano semelhante durante uma
entrevista conduzida pela âncora do canal de televisão de Boston, Channel 5,
Natalie Jacobson. Ao referir-se à Guerra do Golfo, Bush disse “Cumprimos a
nossa agressão” em vez do certamente pretendido “Cumprimos a nossa missão”. As
palavras aparentemente trocadas de Bush e de Quayle põe a nu a pedagogia das
grandes mentiras. As suas declarações capturam com precisão a essência da
hipótese colocada por José Ortega y Gasset, de que se aquilo a que chamamos a
nossa civilização fosse “deixada em paz” e deixada à mercê de comissários como
Henry Kissinger daria origem ao renascimento do primitivismo e
do barbarismo.
Os seus exemplos
do barbarismo no Kosovo, Turquia, Colômbia e Laos apontam para o barbarismo da
civilização. Em muitos casos, o alto nível de sofisticação técnica atingido
pela nossa assim chamada civilização tem sido utilizado das formas mais
bárbaras, como foi provado pela utilização das câmaras de gás nos judeus e os bombardeamentos
do Laos e do Camboja. Com certeza não é uma civilização iluminada aquela que se
orgulha de reduzir o Iraque a um nível pré-industrial – matar dezenas de
milhares de vítimas inocentes, incluindo mulheres e crianças, e mantendo Saddam
Hussein, o nosso senhor da guerra, no poder.
Noam Chomsky – É habitualmente
esperado que a ação militar dos EUA deixe o tirano
assassino do
Iraque no poder, prosseguindo com o seu programa de armamento e minando qualquer
inspeção internacional que exista. Também se devia chamar a atenção para o fato
de os piores crimes de Saddam terem sido cometidos enquanto ele era um aliado e
um parceiro comercial favorecido dos EUA e que, imediatamente depois de ele ter
sido expulso do Kuwait, os EUA observaram silenciosos enquanto ele se foi o
responsável pela chacina dos iraquianos rebeldes – primeiro os xiitas e depois
os curdos – recusando mesmo o acesso destes a armas capturadas dos iraquianos.
As histórias oficiais raramente transmitem uma imagem exata do que está a
acontecer. As histórias oficiais também não criarão as estruturas para
desvendar a verdade. Uma educação que busca um mundo democrático deveria
fornecer aos estudantes as ferramentas críticas para fazer as ligações que desvendariam
as mentiras e enganos. Em vez de doutrinar os estudantes com mitos democráticos,
as escolas deveriam envolvê-los na prática da democracia.
Donaldo Macedo: É pouco
provável que as escolas deixem de doutrinar os estudantes com mitos, já que é
através do poder da propagação dos mitos que a ideologia dominante tenta abafar
a manifestação de uma democracia verdadeiramente cultural e manter a presente
hegemonia cultural e econômica. Eu concordo com você, quando você diz que as
escolas deveriam envolver os estudantes na prática da democracia. Contudo, como
você já apontou diversas vezes, para o conseguir as escolas têm de fornecer aos
estudantes as ferramentas críticas para desvendar o conteúdo ideológico dos mitos,
para conseguirem começar a compreender melhor porque é que, por exemplo, o
professor de David Spritzler e o diretor da escola, que tinham investido
fortemente no sistema doutrinal dominante, se deram ao trabalho de sacrificar
os princípios do próprio Juramento de Fidelidade para impedirem Spritzler de
viver na verdade, uma vez que indivíduos que querem viver na verdade
representam urna ameaça real ao sistema doutrinal dominante e devem ser
eliminados ou, pelo menos, neutralizados.
Por isso, não
devemos ficar surpresos com o fato de o professor e o diretor tentarem impedir
David Spritzler de apontar a hipocrisia e a diferença de classes na nossa sociedade
supostamente sem classes.
Noam Chomsky – O mito de que
vivemos numa sociedade sem classes é uma farsa, mas uma em que a maioria das
pessoas acredita. A minha filha, que é professora numa universidade pública,
conta-me que a maioria dos estudantes dela se consideram de classe média e não
mostram qualquer sinal de consciência de classe.
Donaldo Macedo – O próprio
discurso acadêmico aponta para a ausência de consciência de classe. Apesar de
nos meios de comunicação social se encontrar o termo classe trabalhadora e
também classe média (como “uma redução dos impostos para a classe média”),
nunca se vê mencionada uma classe dominante ou classe alta.
Noam Chomsky – Uma classe
dominante de certeza não encontrará. É simplesmente suprimida. E os estudantes
da classe trabalhadora como os da turma da minha filha não se consideram da
classe trabalhadora. Isso é outro sinal de uma verdadeira doutrinação.
Donaldo Macedo –
A
elite dominante, ajudada pela intelligentsia, fez grandes esforços
para criar
mecanismos que perpetuam o mito de que os Estados Unidos são uma sociedade sem
classes. Com todo o debate acerca da falha da educação neste país, uma das
variáveis que nunca é mencionada é a classe, apesar de a classe ser um fator
determinante para o sucesso escolar. A maioria dos estudantes que não passam de
ano provêm geralmente das classes mais baixas, e contudo os educadores evitam religiosamente
utilizar a classe como um fator nas análises e afirmações. Em vez disso, criam
todo o gênero de eufemismos como “economicamente marginais”, “estudantes
desfavorecidos”, estudantes “em risco” etc., como um processo de evitar nomear
a realidade da opressão de classes. E se se utilizar a classe como um fator de
análise, é-se imediatamente acusado de guerra de classes. Lembra-se da campanha
presidencial de 1988, quando George Bush admoestou o seu oponente dizendo, “Não
vou deixar que esse governador liberal divida esta nação... Eu acho que isso é
para as democracias européias ou algo do gênero. Não para os Estados Unidos da
América. Não seremos divididos por classes... somos o país dos grandes sonhos,
das grandes oportunidades, do jogo limpo, e esta tentativa de dividir a América
em classes falhará porque o povo americano irá perceber que este é um país muito
especial, porque qualquer pessoa a quem seja dada uma oportunidade pode vencer
e realizar o sonho americano”.
Noam Chomsky – Sim, é um país
muito especial se se for rico. Para tomarmos um exemplo muito simples, repare
como o sistema tributário se torna cada vez menos progressivo ao enriquecer os
ricos através de um grande corte fiscal e enormes subsídios que ao longo da história
têm sido dados às corporações. Bush está certo ao falar de uma guerra de
classes.
Porém, é uma
guerra de classes concebida para esmagar ainda mais os pobres. Todos os
indicadores
apontam que a pobreza tem se mantido alta entre as crianças, e a desnutrição está
piorando com os programas levados a cabo para promover os “valores familiares”.
O assalto ao estado do bem-estar social serve para esmagar ainda mais os
pobres, as mães que recebem pensões e outras pessoas que precisam de ajuda,
enquanto mantém intacta a poderosa ama, subsidiando corporações com
transferências maciças de dinheiro. Nós temos um sistema de seguro social, mas
é um seguro social para os ricos. Para se manter um sistema de seguro social em
bom estado de funcionamento para os ricos, é preciso ter uma classe empresarial
altamente consciente. As outras pessoas têm que ser convencidas de que vivem
numa sociedade sem classes. As escolas sempre estiveram a serviço da manutenção
deste mito.
Notas
1 Tradução livre
da citação: Paulo Freire. The Politics of Education. Culture, Power, and
Liberation (South Hadley, Mass.: Bergin & Garvey, 1985), 103. [NT: Este
livro corresponde aos textos publicados em Ação cultural para a liberdade e
outros escritos, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976] 2 Ibid. NT1 Juramento à
bandeira dos EUA: “Eu prometo lealdade à bandeira dos Estados Unidos da América
e à República a qual representa, uma nação, sob Deus, indivisível, com
liberdade e justiça para todos”. In: http://www.usflag.org/pledge.portuguese.html.
NT2 A Comissão
Trilateral é uma organização internacional privada que congrega cerca de 325
personalidades líderes em diversas áreas de actividade – empresarial, política
(excepto quando em funções governamentais), académica e imprensa – provenientes
das três maiores regiões industrializadas e democráticas do mundo: América do
Norte, Japão e Europa. In: http:
/www.fpglobal.pt/pt/tril.html.
NT3 Grande
empresa estadunidense, líder no mercado das telecomunicações.
Correspondência
Noam Chomsky,
Massachussets Institute of Techonology, Boston, USA.
Donaldo Macedo,
University of Massachussets, Boston, USA.
E-mail: donaldo.macedo@umb.edu
Currículo sem
Fronteiras, v.4, n.1, pp. 5-21, Jan/Jun 2004.
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