A paixão viva: Lou Andréas-Salomé
Josenildo Santos de Souza.
Lou
Salomé foi alguém que viveu a paixão com paixão. A alegria de viver transpirava
em cada um dos seus gestos. Um ser humano para quem a felicidade é condição
natural e destino do homem:”dentro da felicidade eu estou em casa”
dizia. E ainda: “A única perfeição é a alegria”. Essa paixão pela vida,
ela transmitia aos outros, fazendo com que as pessoas ao seu redor
desenvolvessem e dessem o melhor de si.
Lou
aconselhava que desde cedo devemos exercitar o apetite de aprender e de amar.
Dizia que deveríamos sempre: “tornar a vida o exercício apaixonado de uma
busca”. Sua exploração de todos os possíveis. Isto que requer a fruição
intensa e incessante de coisas e pessoas que nos cercam, de modo que o mundo
exterior em nós penetre e a nós se incorpore. Pois a vida dizia Rilke “está
nas pequenas coisas como nas grandes: no que é apenas visível e no que é imenso”.
Para
Lou a vida é feita de ousadia: “Ousa tudo, não tenhas necessidade de nada”.
Ela advertia. “A vida te dará poucos presentes”, acredita: “se queres
uma vida, é preciso que roubes” a vida. Em Lou residia o desejo de ir além,
de ultrapassar as fronteiras do conhecido: no estudo como no amor.
Via
no corpo o meio mais concreto e imediato de inserção no mundo. Meio de falar ao
outro, de ser por ele aceito. Pois o corpo é, antes de tudo, relação de mim
para comigo mesmo, o campo de auto-encontro. O lugar onde se realiza o choque
entre o físico e o psíquico. Lou: “A alegria contida no prazer fisiológico
só pode abrir bem aberta a porta às intrussões da alma”. Afirmou que o “primeiro
dever com o corpo é o amor”. As alegrias que o corpo pode nos dar são ou
deveriam ser desfrutadas em alto grau pelo espírito. E, entre os meio por
excelência que tem o corpo de tomar consciência de si mesmo, estão o contato
com a natureza e o amor. A natureza é, assim, muito mais do que um cenário:é
fonte de símbolo, agente de um diálogo, mundo exterior que em nós penetra. A
natureza nos dá a correspondência entre o corporal e o espiritual. Sua visão
faz surgir em nós aquele gozo desinteressado que se assemelha à contemplação da
obra de arte ou o prazer de amar: desbloqueia em nós, a partir da fruição dos
sentidos, o prazer de olhar, de aspirar, de tocar, a atividade produtiva da
imaginação.
E
quando nos apaixonamos, quando amamos, o ser amado nos aparece como inserido na
natureza. O ato amoroso “nos enche a alma inteira [...] de ilusões e de
idealizações espirituais, forçando-nos ao mesmo tempo a nos chocar brutalmente,
sem possibilidade de se esquivar, ao corpo”, pois todos os seus desejos,
todas as suas aspirações se inflama ao mesmo tempo. A paixão amoroso tem a
capacidade de abrir em nós o caminho por
tudo aquilo que é vida, que em nós lateja de mais secreto, e que atinge as
raízes do ser. O espírito descobre forças que não possuía ou das quais não se
apercebia. O amado e o amante, vê a si mesmo, e ao mundo exterior, como algo
recém-criado. Por isso, às vezes a gente sai do amor como quem saiu de uma
catedral, redescobrindo o mundo aqui fora com os olhos renovados. O ato
amoroso, vivido em plenitude, obriga os amantes a concentrar em si mesmos tudo
aquilo de que são capazes. A paixão amorosa ”é uma porta, diferente de todas
as outras portas. É o caminho por excelência que nos leva a nós mesmos”.
Por ela “nós não somos um mundo de realidade, somos um mundo onírico,
irresistível”. Assim, o amor durará enquanto os amantes forem capazes de oferecer
ao outro essa entrega, que se dá acesso de modo vital à capacidade de se
concentrar neles mesmos, de ser um mundo para si por causa do outro.
Somos
embalados pelo êxtase da paixão. Porém, ela nos lembra “que no êxtase
amoroso, por mais que desejamos nossa fusão com o amado, sempre somos, em
última análise, remetidos a nós mesmos. É nessa fusão que alçamos aquele
“momento esplêndido” que o ser amado aparece como a única realidade
existente. Mais é no afastamento dos corpos que é provocado a depuração do
amor. Lou escreveu a novela Uma longa dissipação transcrita aqui.
E
assim escreve:
Ele me beijava, sem se soltar, sem
nada ceder a sua impetuosidade, e seus carinhos quase me brutalizavam. Beijava
como alguém bebe, e que, duvidando poder aplacar sua sede, ficou meio morto
sobre o solo. Beijava-me com a nostalgia, o fervor e a gratidão de um homem que
seus beijos o arrancam à morte, no meio de inexprimíveis delícias.
Eu não me mexia, não me defendia.
Cedia docemente a seus gostos sem lhes responder. Sentia com uma piedade
espantada a explosão desta longa paixão recalcada à força de renúncia e que
neste instante se satisfazia como cega. E, enquanto eu cedia a seus beijos
insensatos, algo estranho despertava em mim, algo terno e quase maternal – o devotamento
de uma mãe que, sorrindo a seu filho que chora, lhe oferece o seio de onde
jorra o alimento: [...]
Benno me libertou enfim com um
gemido, como se acabasse de se ferir. Levantou-se de um salto, trêmulo, e me
disse com uma expressão de arrebatamento apaixonado: “Eu te agradeço. Tu, o
mais querido de todos os seres, eu te agradeço! Teria morrido sufocado e
dilacerado se tu me houvesses repelido!”
Ele não pensou, não sonhou um só
instante, que não tinha compartilhado sua embriaguez. Fundir-se com o outro
numa comunhão dos sentidos é também amor, claro, mas a um certo grau da paixão
o amor se torna um egoísmo tão irrefletido que não tem mais nem uma única fibra
sensível para o mundo exterior, mesmo eu seja o mundo dos sentimentos do ser
amado, e que toda dissonância perturbadora se torna impossível, pelo fato mesmo
de que a gente não a recebe nem a percebe mais. A paixão amorosa é a última, a
extrema solidão.
A
fusão inteira do nosso ser com o outro, por mais querido que seja, não seria
desejável. É preciso que sejamos cada vez mais nós mesmos, para poder ser um
mundo para o outro. A relação erótica, remetendo-nos a nós próprios. “Só
aquele que permanece inteiramente ele próprio pode, com o tempo, permanecer
objeto do amor, porque só ele é capaz de simbolizar para o outro a vida”. É
preciso que a gente seja sempre, um para o outro a necessidade de renovação e de existência na
relação amorosa: “Pois, no seio mesmo da paixão, nunca se deve tratar de
“conhecer perfeitamente o outro”. É terrível de dizer, mas, no fundo, o amante
não está querendo saber “quem é” em realidade seu parceiro. Ele se contenta de
saber que o outro lhe faz um bem incompreensível... os amantes permanecem um
para o outro, em última análise, um mistério”.
O
amor, antes de tudo, não é o que se chama entregar-se, confundir-se, unir-se a
outra pessoa. [...] O amor é uma ocasião sublime para o indivíduo amadurecer,
tornar-se algo por si mesmo, tornar-se um mundo para si, por causa de um outro
ser. Se o amor é uma busca, se o estudo é uma busca, a arte uma busca, a vida
inteira é também busca. E o amor e a paixão são a mola dessa busca. É preciso
buscar com amor, com paixão, a vida. É preciso amar a vida em todas as suas
fases. Citando Camus que diz “eu amo a vida e eis a minha verdadeira fraqueza.
Eu amo tanto a vida que já sinto saudades da minha partida”.
Aqui
incluímos a letra da música O que é o que é de Gonzaga Júnior
Eu fico com a pureza da
resposta das crianças.
É a vida, é bonita e é
bonita.
Viver e não ter a vergonha de
ser feliz.
Cantar e cantar e cantar a
beleza de ser um eterno aprendiz.
Ai, meu Deus.
Eu sei que a vida devia ser
bem melhor e será.
Mas isso não impede que eu
repita.
É bonita, é bonita e é
bonita.
E a vida, e a vida o que é,
diga lá meu irmão.
Ela
é a batida de um coração.
Ela é uma doce ilusão.
E a vida, ela é maravilha ou
é sofrimento.
Ela é alegria ou lamento.
O que é, o que é, meu irmão.
Há quem fale que a vida da
gente é um nada no mundo.
É uma gota e um tempo que nem
dá um segundo.
Há quem fale que é um divino,
um mistério profundo.
É o sopro do criador, numa
atitude repleta de amor.
Você diz que a luta é prazer.
Ele diz que a vida é viver.
Ela diz que melhor é morrer,
pois amada não é o verbo é sofrer
Eu só sei que confio na moça.
E na moça eu ponho a força e
a fé.
Somos nós que fazemos a vida
Pro que der ou puder ou
quiser.
Sempre desejada por mais que
esteja errada.
Ninguém quer a morte, só
saúde e sorte.
E a pergunta roda e a cabeça
agita.
E
para concluir o poema de Rainer Maria Rilke, para Lou:
Então tua carta me trouxe a
doce benção,
Eu soube que o longínquo não
existia:
Em tudo que é belo tu vens ao
meu encontro,
Tu minha brisa de primavera.
Tu minha chuva de verão,
Tu minha noite de junho com
mil caminhos,
Nos quais nenhum iniciado me
precedeu:
Estou em ti.
Pois,
você tem um olhar como se fosse natal, um raio de sol.
Tu eras para mim a mais
maternal das mulheres,
eras um amigo como são os
homens,
ao olhar, eras uma mulher
e eras no mais das vezes
ainda uma criança.
eras a coisa mais terna que
encontrei,
eras a coisa mais dura com a
qual lutei.
eras o cimo que me tinha
abençoado –
e te tornaste o abismo que me
devorou.
Referência:
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