sexta-feira, 14 de março de 2014

A paixão viva Lou Andréas-Salomé



A paixão viva: Lou Andréas-Salomé

                                                                                                Josenildo Santos de Souza.

Lou Salomé foi alguém que viveu a paixão com paixão. A alegria de viver transpirava em cada um dos seus gestos. Um ser humano para quem a felicidade é condição natural e destino do homem:”dentro da felicidade eu estou em casa” dizia. E ainda: “A única perfeição é a alegria”. Essa paixão pela vida, ela transmitia aos outros, fazendo com que as pessoas ao seu redor desenvolvessem e dessem o melhor de si.

Lou aconselhava que desde cedo devemos exercitar o apetite de aprender e de amar. Dizia que deveríamos sempre: “tornar a vida o exercício apaixonado de uma busca”. Sua exploração de todos os possíveis. Isto que requer a fruição intensa e incessante de coisas e pessoas que nos cercam, de modo que o mundo exterior em nós penetre e a nós se incorpore. Pois a vida dizia Rilke “está nas pequenas coisas como nas grandes: no que é apenas visível e no que é imenso”.

Para Lou a vida é feita de ousadia: “Ousa tudo, não tenhas necessidade de nada”. Ela advertia. “A vida te dará poucos presentes”, acredita: “se queres uma vida, é preciso que roubes” a vida. Em Lou residia o desejo de ir além, de ultrapassar as fronteiras do conhecido: no estudo como no amor.

Via no corpo o meio mais concreto e imediato de inserção no mundo. Meio de falar ao outro, de ser por ele aceito. Pois o corpo é, antes de tudo, relação de mim para comigo mesmo, o campo de auto-encontro. O lugar onde se realiza o choque entre o físico e o psíquico. Lou: “A alegria contida no prazer fisiológico só pode abrir bem aberta a porta às intrussões da alma”. Afirmou que o “primeiro dever com o corpo é o amor”. As alegrias que o corpo pode nos dar são ou deveriam ser desfrutadas em alto grau pelo espírito. E, entre os meio por excelência que tem o corpo de tomar consciência de si mesmo, estão o contato com a natureza e o amor. A natureza é, assim, muito mais do que um cenário:é fonte de símbolo, agente de um diálogo, mundo exterior que em nós penetra. A natureza nos dá a correspondência entre o corporal e o espiritual. Sua visão faz surgir em nós aquele gozo desinteressado que se assemelha à contemplação da obra de arte ou o prazer de amar: desbloqueia em nós, a partir da fruição dos sentidos, o prazer de olhar, de aspirar, de tocar, a atividade produtiva da imaginação.

E quando nos apaixonamos, quando amamos, o ser amado nos aparece como inserido na natureza. O ato amoroso “nos enche a alma inteira [...] de ilusões e de idealizações espirituais, forçando-nos ao mesmo tempo a nos chocar brutalmente, sem possibilidade de se esquivar, ao corpo”, pois todos os seus desejos, todas as suas aspirações se inflama ao mesmo tempo. A paixão amoroso tem a capacidade de abrir em nós o caminho  por tudo aquilo que é vida, que em nós lateja de mais secreto, e que atinge as raízes do ser. O espírito descobre forças que não possuía ou das quais não se apercebia. O amado e o amante, vê a si mesmo, e ao mundo exterior, como algo recém-criado. Por isso, às vezes a gente sai do amor como quem saiu de uma catedral, redescobrindo o mundo aqui fora com os olhos renovados. O ato amoroso, vivido em plenitude, obriga os amantes a concentrar em si mesmos tudo aquilo de que são capazes. A paixão amorosa ”é uma porta, diferente de todas as outras portas. É o caminho por excelência que nos leva a nós mesmos”. Por ela “nós não somos um mundo de realidade, somos um mundo onírico, irresistível”. Assim, o amor durará enquanto os amantes forem capazes de oferecer ao outro essa entrega, que se dá acesso de modo vital à capacidade de se concentrar neles mesmos, de ser um mundo para si por causa do outro.

Somos embalados pelo êxtase da paixão. Porém, ela nos lembra “que no êxtase amoroso, por mais que desejamos nossa fusão com o amado, sempre somos, em última análise, remetidos a nós mesmos. É nessa fusão que alçamos aquele “momento esplêndido” que o ser amado aparece como a única realidade existente. Mais é no afastamento dos corpos que é provocado a depuração do amor. Lou escreveu a novela Uma longa dissipação transcrita aqui.

E assim escreve:

Ele me beijava, sem se soltar, sem nada ceder a sua impetuosidade, e seus carinhos quase me brutalizavam. Beijava como alguém bebe, e que, duvidando poder aplacar sua sede, ficou meio morto sobre o solo. Beijava-me com a nostalgia, o fervor e a gratidão de um homem que seus beijos o arrancam à morte, no meio de inexprimíveis delícias.

Eu não me mexia, não me defendia. Cedia docemente a seus gostos sem lhes responder. Sentia com uma piedade espantada a explosão desta longa paixão recalcada à força de renúncia e que neste instante se satisfazia como cega. E, enquanto eu cedia a seus beijos insensatos, algo estranho despertava em mim, algo terno e quase maternal – o devotamento de uma mãe que, sorrindo a seu filho que chora, lhe oferece o seio de onde jorra o alimento: [...]

Benno me libertou enfim com um gemido, como se acabasse de se ferir. Levantou-se de um salto, trêmulo, e me disse com uma expressão de arrebatamento apaixonado: “Eu te agradeço. Tu, o mais querido de todos os seres, eu te agradeço! Teria morrido sufocado e dilacerado se tu me houvesses repelido!”

Ele não pensou, não sonhou um só instante, que não tinha compartilhado sua embriaguez. Fundir-se com o outro numa comunhão dos sentidos é também amor, claro, mas a um certo grau da paixão o amor se torna um egoísmo tão irrefletido que não tem mais nem uma única fibra sensível para o mundo exterior, mesmo eu seja o mundo dos sentimentos do ser amado, e que toda dissonância perturbadora se torna impossível, pelo fato mesmo de que a gente não a recebe nem a percebe mais. A paixão amorosa é a última, a extrema solidão.

A fusão inteira do nosso ser com o outro, por mais querido que seja, não seria desejável. É preciso que sejamos cada vez mais nós mesmos, para poder ser um mundo para o outro. A relação erótica, remetendo-nos a nós próprios. “Só aquele que permanece inteiramente ele próprio pode, com o tempo, permanecer objeto do amor, porque só ele é capaz de simbolizar para o outro a vida”. É preciso que a gente seja sempre, um para o outro  a necessidade de renovação e de existência na relação amorosa: “Pois, no seio mesmo da paixão, nunca se deve tratar de “conhecer perfeitamente o outro”. É terrível de dizer, mas, no fundo, o amante não está querendo saber “quem é” em realidade seu parceiro. Ele se contenta de saber que o outro lhe faz um bem incompreensível... os amantes permanecem um para o outro, em última análise, um mistério”. 

O amor, antes de tudo, não é o que se chama entregar-se, confundir-se, unir-se a outra pessoa. [...] O amor é uma ocasião sublime para o indivíduo amadurecer, tornar-se algo por si mesmo, tornar-se um mundo para si, por causa de um outro ser. Se o amor é uma busca, se o estudo é uma busca, a arte uma busca, a vida inteira é também busca. E o amor e a paixão são a mola dessa busca. É preciso buscar com amor, com paixão, a vida. É preciso amar a vida em todas as suas fases. Citando Camus que diz “eu amo a vida e eis a minha verdadeira fraqueza. Eu amo tanto a vida que já sinto saudades da minha partida”.

Aqui incluímos a letra da música O que é o que é de Gonzaga Júnior

                   Eu fico com a pureza da resposta das crianças.
                   É a vida, é bonita e é bonita.
                   Viver e não ter a vergonha de ser feliz.
                   Cantar e cantar e cantar a beleza de ser um eterno aprendiz.
                   Ai, meu Deus.
                   Eu sei que a vida devia ser bem melhor e será.
                   Mas isso não impede que eu repita.
                   É bonita, é bonita e é bonita.
                   E a vida, e a vida o que é, diga lá meu irmão.
                  Ela é a batida de um coração.
                   Ela é uma doce ilusão.
                   E a vida, ela é maravilha ou é sofrimento.
                   Ela é alegria ou lamento.
                   O que é, o que é, meu irmão.
                   Há quem fale que a vida da gente é um nada no mundo.
                   É uma gota e um tempo que nem dá um segundo.
                   Há quem fale que é um divino, um mistério profundo.
                   É o sopro do criador, numa atitude repleta de amor.
                   Você diz que a luta é prazer.
                   Ele diz que a vida é viver.
                   Ela diz que melhor é morrer, pois amada não é o verbo é sofrer
                   Eu só sei que confio na moça.
                   E na moça eu ponho a força e a fé.
                   Somos nós que fazemos a vida
                   Pro que der ou puder ou quiser.
                   Sempre desejada por mais que esteja errada.
                   Ninguém quer a morte, só saúde e sorte.
                   E a pergunta roda e a cabeça agita.

E para concluir o poema de Rainer Maria Rilke, para Lou:

                   Então tua carta me trouxe a doce benção,
                   Eu soube que o longínquo não existia:
                   Em tudo que é belo tu vens ao meu encontro,
                   Tu minha brisa de primavera. Tu minha chuva de verão,
                   Tu minha noite de junho com mil caminhos,
                   Nos quais nenhum iniciado me precedeu:
                   Estou em ti.

Pois, você tem um olhar como se fosse natal, um raio de sol.

                   Tu eras para mim a mais maternal das mulheres,
                   eras um amigo como são os homens,
                   ao olhar, eras uma mulher
                   e eras no mais das vezes ainda uma criança.
                   eras a coisa mais terna que encontrei,
                   eras a coisa mais dura com a qual lutei.
                   eras o cimo que me tinha abençoado –
                   e te tornaste o abismo que me devorou.


Referência:

Lou Andreas-Salomé: a paixão viva. Luzilá Gonçalves Ferreira. Os Sentidos da Paixão. Sérgio Cardoso...[et al.]. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. Pág 359.

Nenhum comentário:

Postar um comentário