segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

Amazônia: transpondo as fronteiras na criação do intelectual coletivo




Davi Avelino, Doutor em Sociedade e Cultura na Amazônia e Professor do Departamento de História – UFAM, discute no artigo o papel do intelectual coletivo, presente no livro Fronteiras de Saberes.

A riqueza da Amazônia reside não apenas na sua sociobiodiversidade, mas também em ser um espaço físico, social e simbólico que inclui fronteiras étnicas, territoriais, culturais e de saberes. Como uma abertura para a discussão desses múltiplos sentidos é que o conjunto de artigos que compõe o livro Fronteira de Saberes problematiza, de forma acurada, as possibilidades de ser ler a região e suas fronteiras.

Outro aspecto a se destacar desse empreendimento coletivo são as trocas simbólicas que envolvem pesquisadores(as) situados(as) em um espaço social amazônico, ainda que não necessariamente residam nele, mas o problematizam de perto a partir de experiências de campo e anos de leitura. Desta forma, o diálogo que se estabeleceu permitiu compreender processos sociais que abarcam a região de leste a oeste, com pesquisas localizadas no município de Parintins e de Tabatinga, além dos trabalhos oriundos da Universidade Nacional da Colômbia, com sede situada em Letícia.

Mas afinal, o que está em jogo hoje quando problematizamos a região em seus vários aspectos? É possível articular um conjunto de problemáticas fundamentais para compreender as transformações pelas quais a região vem passando?

Do ponto de vista epistemológico, faz-se necessário, por um lado, compreender a historicidade dos processos que vem afetando a região nas últimas décadas do século XX e na década inicial do XXI como forma a se evitar visões naturalizadas, e, por outro, apreender como os sujeitos sociais ou os agentes históricos (definidos etnicamente ou por relações de trabalho) vêm desenvolvendo estratégias para encarar essas mudanças.

Uma possível contribuição a esse debate reside na compreensão das formas de mobilização das populações locais frente aos novos desafios do presente. O argumento levantando por Mark Harris (2006) é de que as populações amazônicas, especialmente as que vivem nos beiradões dos rios da região, desenvolveram formas de enfrentamento aos projetos de modernização formulados longe das demandas das locais. Tais formas, marcadas pela flexibilização e resiliência, seriam centrais para se compreender as estratégias adaptativas que essas populações vêm fomentando ao logo do tempo.

A mobilização política em muitas comunidades que passaram a acionar a fronteira étnica, num movimento que pode ser chamado de etnogênese (BOCCARA), ou mesmo o enfrentamento ao latifúndio no sul do Pará e do Amazonas com a organização do Movimento Sem Terra (MST), marca uma nova dinâmica temporal em que esses sujeitos saem da invisibilidade e passam a se posicionar no espaço público.

A articulação entre formas locais de mobilização e luta com as assembleias e encontros nacionais e até internacionais, perfazem estratégias que superam as formas clássicas de movimentos sociais, caracterizados pelos partidos e sindicados, e dão maior dinâmica às pautas das chamadas populações tradicionais (ALMEIDA, 1994).

A resposta a esse processo pode ser vista de forma clara. A coalisão de interesses de empresários do setor do agronegócio, articulados com grupos políticos e midiáticos locais, visa frear conquistas em cursos de algumas comunidades indígenas e populações extrativistas da região. Nesse contexto, forças conservadoras e autoritárias se levantam e ameaçam colocar em risco décadas de lutas e conquistas.

O que isso implica? Implica em um reordenamento territorial com a revalorização das terras públicas da região em novo mercado de terras aquecido; implica em “novo” discurso global sobre a região com dramáticas consequências para os povos indígenas, que agora veem suas terras já demarcadas sob ameaça, implica, em suma, nos vários aspectos problematizados no livro.

Contra essa conjuntura perversa, faz-se necessária a elaboração de estratégias coletivas e criativas para se contrapor ao ideário neoliberal de uma exploração sem limites. Somente uma estratégia que nos permita transpor as fronteiras entre as diversas áreas do conhecimento e os diversos saberes poderá contribuir para a construção do que Pierre Bourdieu chamou de intelectual coletivo. Não se trata de abrir mão dos critérios de competência e saber que fundamentam cada área em nome de um conhecimento engajado, mas de manter o rigor científico sem abrir mão das exigências acadêmicas, e articulá-los às formas de intervenção no debate público.

O trabalho que se apresentou com Fronteiras dos Saberes representa, de alguma forma, esse intelectual coletivo, na medida em que é fruto de um esforço coletivo que faz dialogar correntes teóricas distintas, mas que possuem o objetivo de se contrapor a visões de mundo autoritárias e conservadoras.

Bibliografia
ALMEIDA, Alfredo Wagner Berno. Universalização e localismo: movimentos sociais e crise dos padrões tradicionais de relação política na Amazônia. In: SILVEIRA, Isolda. Amazônia e a crise da modernização. Belém. Museu Paraense Emílio Goldi, 1994.

BOCCARA, Guillaume. Poder colonial e etnicidade no Chile: territorialização e reoganização entre os Mapuche na época colonia. In: Revista Tempo: n.23, maio de 2007. Universidade Federal Fluminense.

BOURDIEU, Pierre. Por um conhecimento engajado. In: Contrafogos: por um movimento social Europeu.

HARRIS, Mark. Presente ambivalente: por uma maneira amazônica de estar no tempo. In: ADAMS, Cristina et all. Sociedades Caboclas Amazônicas: modernidade e invisibilidade. São Paulo: Anablume, 2006.

Fonte:

Davi Avelino
Doutor em Sociedade e Cultura na Amazônia
Professor do Departamento de História – UFAM

Fronteira de Saberes/ Renan Albuquerque (org.)...[et al.]. – Manaus: EDUA, 2016.

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