Davi Avelino, Doutor em
Sociedade e Cultura na Amazônia e Professor do
Departamento de História – UFAM, discute no artigo o papel do intelectual coletivo, presente no livro Fronteiras de Saberes.
A riqueza da
Amazônia reside não apenas na sua sociobiodiversidade, mas também em ser um
espaço físico, social e simbólico que inclui fronteiras étnicas, territoriais,
culturais e de saberes. Como uma abertura para a discussão desses múltiplos
sentidos é que o conjunto de artigos que compõe o livro Fronteira de Saberes
problematiza, de forma acurada, as possibilidades de ser ler a região e
suas fronteiras.
Outro aspecto a
se destacar desse empreendimento coletivo são as trocas simbólicas que envolvem
pesquisadores(as) situados(as) em um espaço social amazônico, ainda que não
necessariamente residam nele, mas o problematizam de perto a partir de
experiências de campo e anos de leitura. Desta forma, o diálogo que se
estabeleceu permitiu compreender processos sociais que abarcam a região de
leste a oeste, com pesquisas localizadas no município de Parintins e de Tabatinga,
além dos trabalhos oriundos da Universidade Nacional da Colômbia, com sede
situada em Letícia.
Mas afinal, o
que está em jogo hoje quando problematizamos a região em seus vários aspectos?
É possível articular um conjunto de problemáticas fundamentais para compreender
as transformações pelas quais a região vem passando?
Do ponto de
vista epistemológico, faz-se necessário, por um lado, compreender a
historicidade dos processos que vem afetando a região nas últimas décadas do
século XX e na década inicial do XXI como forma a se evitar visões naturalizadas,
e, por outro, apreender como os sujeitos sociais ou os agentes históricos
(definidos etnicamente ou por relações de trabalho) vêm desenvolvendo estratégias
para encarar essas mudanças.
Uma possível
contribuição a esse debate reside na compreensão das formas de mobilização das
populações locais frente aos novos desafios do presente. O argumento levantando
por Mark Harris (2006) é de que as populações amazônicas, especialmente as que
vivem nos beiradões dos rios da região, desenvolveram formas de enfrentamento
aos projetos de modernização formulados longe das demandas das locais. Tais
formas, marcadas pela flexibilização e resiliência, seriam centrais para se
compreender as estratégias adaptativas que essas populações vêm fomentando ao
logo do tempo.
A mobilização
política em muitas comunidades que passaram a acionar a fronteira étnica, num
movimento que pode ser chamado de etnogênese (BOCCARA), ou mesmo o
enfrentamento ao latifúndio no sul do Pará e do Amazonas com a organização do
Movimento Sem Terra (MST), marca uma nova dinâmica temporal em que esses
sujeitos saem da invisibilidade e passam a se posicionar no espaço público.
A articulação
entre formas locais de mobilização e luta com as assembleias e encontros
nacionais e até internacionais, perfazem estratégias que superam as formas
clássicas de movimentos sociais, caracterizados pelos partidos e sindicados, e
dão maior dinâmica às pautas das chamadas populações tradicionais (ALMEIDA,
1994).
A resposta a
esse processo pode ser vista de forma clara. A coalisão de interesses de
empresários do setor do agronegócio, articulados com grupos políticos e
midiáticos locais, visa frear conquistas em cursos de algumas comunidades
indígenas e populações extrativistas da região. Nesse contexto, forças
conservadoras e autoritárias se levantam e ameaçam colocar em risco décadas de lutas
e conquistas.
O que isso
implica? Implica em um reordenamento territorial com a revalorização das terras
públicas da região em novo mercado de terras aquecido; implica em “novo”
discurso global sobre a região com dramáticas consequências para os povos
indígenas, que agora veem suas terras já demarcadas sob ameaça, implica, em
suma, nos vários aspectos problematizados no livro.
Contra essa
conjuntura perversa, faz-se necessária a elaboração de estratégias coletivas e
criativas para se contrapor ao ideário neoliberal de uma exploração sem
limites. Somente uma estratégia que nos permita transpor as fronteiras entre as
diversas áreas do conhecimento e os diversos saberes poderá contribuir para a
construção do que Pierre Bourdieu chamou de intelectual coletivo. Não se trata
de abrir mão dos critérios de competência e saber que fundamentam cada área em
nome de um conhecimento engajado, mas de manter o rigor científico sem abrir
mão das exigências acadêmicas, e articulá-los às formas de intervenção no
debate público.
O trabalho que
se apresentou com Fronteiras dos Saberes representa, de alguma forma,
esse intelectual coletivo, na medida em que é fruto de um esforço coletivo que
faz dialogar correntes teóricas distintas, mas que possuem o objetivo de se
contrapor a visões de mundo autoritárias e conservadoras.
Bibliografia
ALMEIDA, Alfredo
Wagner Berno. Universalização e localismo: movimentos sociais e crise dos
padrões tradicionais de relação política na Amazônia. In: SILVEIRA, Isolda.
Amazônia e a crise da modernização. Belém. Museu Paraense Emílio Goldi, 1994.
BOCCARA,
Guillaume. Poder colonial e etnicidade no Chile: territorialização e reoganização
entre os Mapuche na época colonia. In: Revista Tempo: n.23, maio de 2007.
Universidade Federal Fluminense.
BOURDIEU,
Pierre. Por um conhecimento engajado. In: Contrafogos: por um movimento social
Europeu.
HARRIS, Mark.
Presente ambivalente: por uma maneira amazônica de estar no tempo. In: ADAMS,
Cristina et all. Sociedades Caboclas Amazônicas: modernidade e invisibilidade.
São Paulo: Anablume, 2006.
Fonte:
Davi Avelino
Doutor em
Sociedade e Cultura na Amazônia
Professor do
Departamento de História – UFAM
Fronteira
de Saberes/ Renan Albuquerque (org.)...[et al.]. – Manaus: EDUA, 2016.
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