quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Amazônia: O lugar onde a Lei Maria da Penha ainda não chegou e a violência contra a mulher é invisível



A Lei Maria da Penha ainda nem existia no papel e Gleissimar Castelo Branco, de 48 anos, já era agredida pelo marido. Seu caso não virou discussão na internet, tampouco teve destaque na imprensa nacional. Onde Gleissimar vive, a violência ainda é silenciada de todos os lados. Da porta para dentro, o ditado popular “em briga de marido e mulher não se mete a colher” é seguido à risca. Do lado de fora, quem ousa denunciar, encontra uma terra sem lei. “Aqui na região a mulher só tem duas escolhas: ou você apanha em silêncio ou denuncia e tem grandes chances de morrer assassinada ou desaparecer”, afirma Gleissimar.

Para encontrar esse cenário, siga o rastro do Rio Solimões e viaje até o coração da Floresta Amazônica. Por lá, o Brasil divide uma fronteira aberta com a Colômbia e o Peru, na região conhecida como Alto Solimões, onde vivem mais de 150 mil pessoas. É um Brasil esquecido pelo poder público e com uma população vivendo em extrema pobreza. Os sorrisos são escassos, a hospitalidade tímida e o olhar sempre tem um toque desconfiado. "A gente vive em um silêncio de medo por aqui. Nem o vizinho do lado abre sua vida tão facilmente”, conta Gleissimar.
As duas maiores cidades brasileiras são Tabatinga - que faz divisa com Letícia, na Colômbia, e Santa Rosa, no Perú - e Benjamin Constant, onde Gleissimar vive. Para além dos municípios, a região é cercada por 350 comunidades indígenas, com mais de 76 mil nativos. A proximidade das aldeias com as cidades transformou as terras dos índios em bairros de periferia.

O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de Tabatinga é de apenas 0,616 e, mesmo assim, é o mais alto da região. O IDH é utilizado para mostrar o contexto social da cidade, como a expectativa de vida ao nascer, o acesso ao conhecimento e a qualidade dos municípios. A média da região do Alto Solimões é de 0,533, considerado baixo e preocupante pelas Nações Unidas. Para efeito de comparação, o Brasil tem um IDH DE 0,755 e até mesmo as favelas do Rio de Janeiro são mais desenvolvidas: como o Complexo da Maré (0,686) e o Morro Dona Marta (0,684). O problema é que a maioria das mulheres é coagida a não registrar a ocorrência na delegacia. É como se os casos não existissem por aqui. Todo mundo sabe que acontece, mas ninguém tem coragem de expor

Os dados oficiais de violência mostram que o Amazonas está longe da liderança de mulheres assassinadas (ocupa a 21ª posição no Brasil, com uma taxa de 4,2 a cada 100 mil habitantes), mas quem conhece a região norte sabe que a realidade é bem diferente das estatísticas. Nos últimos cinco anos, as mulheres responderam por mais de 60% dos mais de 10 mil boletins de ocorrência no Alto Solimões. Duas em cada quatro vítimas sofreram lesão corporal ou foram ameaçadas, segundo o Mapa da Violência do Alto Solimões.

"Aqui em Benjamin eu atendo, pelo menos, três casos de violência por dia. O problema é que a maioria das mulheres é coagida a não registrar a ocorrência na delegacia. É como se os casos não existissem por aqui. Todo mundo sabe que acontece, mas ninguém tem coragem de expor", conta a policial militar Aldicéia do Nascimento Lopes.

Há pouco mais de dois meses, Aldicéia descobriu que a violência mora logo ao lado, na casa da irmã mais nova. Aldinéia do Nascimento Lopes foi casada durante 14 anos. Logo depois de colocar a aliança na mão esquerda, a mão direita do marido passou do carinho ao tapa, do afago para a faca. "Ele bebia muito e quando chegava do bar me agredia sempre. Era uma rotina que eu achava normal". Eles sabiam que quando o pai bebia precisavam esconder todas as facas de casa porque senão ele me mataria 

E nessa 'normalidade' da violência, o casal teve quatro filhos. Nos últimos dois anos de relacionamento, ela não saía mais de casa, com medo de provocar o marido. "Se eu conversasse com a vizinha era um motivo de briga e ele já me atacava com o facão. Eu não sei como estou viva até hoje", lamenta. Os filhos cresceram nesse ambiente, assistindo a própria mãe ser agredida diariamente. "Eles sabiam que quando o pai bebia precisavam esconder todas as facas de casa porque senão ele me mataria", conta.

Ninguém da família de Aldinéia sabia das agressões e ameaças que ela sofria do marido. Nem mesmo a irmã, que era policial militar. Em maio deste ano, a dona de casa fugiu pela primeira vez e ligou para a polícia. "Fiz o boletim de ocorrência, mas não tinha delegada em Benjamin Constant para fazer o flagrante", conta a vítima. Eu sou a prisioneira da história, a culpada por ter procurado a polícia. 

Nas mais de oito horas em que ela esperou por um representante da Polícia Civil para o marido ser enquadrado na Lei Maria da Penha foi persuadida a retirar a queixa. "Eu me senti tão mal, achei que eu estava fazendo o errado, que eu era a culpada por aquela situação. No final, ele passou por vítima e eu por agressora", diz. Hoje, o ex-companheiro anda solto pela cidade e Aldicéia presa dentro de casa, com medo de uma vingança. "Eu sou a prisioneira da história, a culpada por ter procurado a polícia."

Infraestrutura
Para além da cultura machista enraizada na região, as cidades amazônicas sofrem o esquecimento do poder público. O Disque 100, canal de denúncia do governo federal, não funciona na Tríplice Fronteira, o 180 está fora do ar e nem delegado existe para investigar os casos de violência. As cidades de Benjamin Constant, Atalaia do Norte e São Paulo de Olivença estão há mais de seis meses sem representantes da Polícia Civil.
Agora me diga qual é a mulher pobre aqui da região que vai ter R$ 40 para viajar. Elas não vão, preferem ficar em suas casas e aguentar mais um dia de tapa na cara, mais um dia ouvindo de seus companheiros que não valem nada.

O município mais próximo que tem delegado é Tabatinga, mas você não pode ser violentada no fim de semana porque a delegacia estará fechada. E nem perca tempo em denunciar violência psicológica. Por lá, só vale se você chegar sangrando e com marcas. “Se você sofrer uma agressão por aqui e quiser denunciar vai precisar pegar um barco, pagar 40 reais, viajar durante uma hora até Tabatinga e escutar que não pode ser atendida porque é de outra cidade”, conta Aldicéia. "Agora me diga qual é a mulher pobre aqui da região que vai ter R$ 40 para viajar. Elas não vão, preferem ficar em suas casas e aguentar mais um dia de tapa na cara, mais um dia ouvindo de seus companheiros que não valem nada."

O HuffPost Brasil questionou a Secretaria de Segurança Pública (SSP) do Amazonas o porquê da falta de efetivo nas cidades do Alto Solimões. Em nota, a SSP negou que os atendimentos de violência contra a mulher não estão sendo feitos nas cidades do Alto Solimões. A Secretaria também afirmou que deslocou um delegado de Tabatinga para atender ocorrências nos municípios próximos, como Benjamin Constant.

O delegado substituto é Thyago Pereira Garcez, que já é responsável por mais duas bases da Polícia Civil. Ele reconhece a falta de estrutura na região. "A gente tem dificuldade com tudo: logística, humana, estrutura física. Não temos efetivo para atender e investigar a quantidade de casos da região. Estamos tapando os buracos menores primeiro", se defende.

A família de Gisele Gonçalves Gomes, de 18 anos, sabe bem o que a falta de efetivo da polícia significa. Em maio de 2015, a jovem saiu para uma festa com as amigas na cidade de São Paulo de Olivença. Um grupo de homens serviu uma bebiba batizada e dopou a jovem. Gisele foi estuprada e violentada e sumiu. "Fomos até a polícia e por falta de efetivo eles não se importaram com o caso. Falaram que era coisa de jovem e que voltaria em algumas horas", conta a irmã da vítima, Ronnie Gonçalves .

Até hoje Gisele não voltou. Até hoje a polícia não conseguiu investigar o caso. Os moradores da cidade assumiram a investigação e fizeram buscas de barco por toda a região do Rio Solimões. "Minha irmã foi agredida, foi sequestrada e em troca recebemos silêncio. Até hoje não sabemos se ela está viva ou morta".

Justiceira
Onde a violência se torna invisível aos olhos da Justiça, uma única mulher tenta expor os olhos roxos, os desaparecimentos e os assasinatos repentinos de mulheres do Alto Solimões. Depois de sentir na pele a violência do marido, Gleissimar deu voz ao que a sociedade amazonense queria calar. "Se você me perguntasse antigamente se existia violência contra a mulher aqui no Solimões eu te afirmaria com 100% de certeza que não. A mulher não grita por aqui. Eu resolvi gritar", diz Gleissimar.
Edgar Maciel - BRASILPOST.