A Lei Maria da Penha
ainda nem existia no papel e Gleissimar
Castelo Branco, de 48 anos, já era agredida pelo marido. Seu
caso não virou discussão na internet, tampouco teve destaque na imprensa
nacional. Onde Gleissimar vive, a violência ainda é silenciada de todos os
lados. Da porta para dentro, o ditado popular “em briga de marido e mulher não
se mete a colher” é seguido à risca. Do lado de fora, quem ousa denunciar,
encontra uma terra sem lei. “Aqui na região a mulher só tem duas escolhas: ou
você apanha em silêncio ou denuncia e tem grandes chances de morrer assassinada
ou desaparecer”, afirma Gleissimar.
Para encontrar esse cenário, siga o rastro do Rio Solimões e viaje até o coração da Floresta Amazônica. Por lá, o Brasil divide uma fronteira aberta com a Colômbia e o Peru, na região conhecida como Alto Solimões, onde vivem mais de 150 mil pessoas. É um Brasil esquecido pelo poder público e com uma população vivendo em extrema pobreza. Os sorrisos são escassos, a hospitalidade tímida e o olhar sempre tem um toque desconfiado. "A gente vive em um silêncio de medo por aqui. Nem o vizinho do lado abre sua vida tão facilmente”, conta Gleissimar.
As duas maiores cidades brasileiras são Tabatinga - que faz divisa com Letícia, na Colômbia, e Santa Rosa, no Perú - e Benjamin Constant, onde Gleissimar vive. Para além dos municípios, a região é cercada por 350 comunidades indígenas, com mais de 76 mil nativos. A proximidade das aldeias com as cidades transformou as terras dos índios em bairros de periferia.
O
Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) de Tabatinga é de apenas 0,616 e, mesmo
assim, é o mais alto da região. O IDH é utilizado para mostrar o contexto
social da cidade, como a expectativa de vida ao nascer, o acesso ao
conhecimento e a qualidade dos municípios. A média da região do Alto Solimões é
de 0,533, considerado baixo e preocupante pelas Nações Unidas. Para efeito de
comparação, o Brasil tem um IDH DE 0,755 e até mesmo as favelas do Rio de
Janeiro são mais desenvolvidas: como o Complexo da Maré (0,686) e o Morro Dona
Marta (0,684). O
problema é que a maioria das mulheres é coagida a não registrar a ocorrência na
delegacia. É como se os casos não existissem por aqui. Todo mundo sabe que
acontece, mas ninguém tem coragem de expor
Os dados oficiais de violência mostram que o Amazonas está longe da liderança de mulheres assassinadas (ocupa a 21ª posição no Brasil, com uma taxa de 4,2 a cada 100 mil habitantes), mas quem conhece a região norte sabe que a realidade é bem diferente das estatísticas. Nos últimos cinco anos, as mulheres responderam por mais de 60% dos mais de 10 mil boletins de ocorrência no Alto Solimões. Duas em cada quatro vítimas sofreram lesão corporal ou foram ameaçadas, segundo o Mapa da Violência do Alto Solimões.
"Aqui
em Benjamin eu atendo, pelo menos, três casos de violência por dia. O problema
é que a maioria das mulheres é coagida a não registrar a ocorrência na
delegacia. É como se os casos não existissem por aqui. Todo mundo sabe que
acontece, mas ninguém tem coragem de expor", conta a policial militar Aldicéia do Nascimento Lopes.
Há pouco mais de dois meses, Aldicéia descobriu que a violência mora logo ao lado, na casa da irmã mais nova. Aldinéia do Nascimento Lopes foi casada durante 14 anos. Logo depois de colocar a aliança na mão esquerda, a mão direita do marido passou do carinho ao tapa, do afago para a faca. "Ele bebia muito e quando chegava do bar me agredia sempre. Era uma rotina que eu achava normal". Eles sabiam que quando o pai bebia precisavam esconder todas as facas de casa porque senão ele me mataria
Há pouco mais de dois meses, Aldicéia descobriu que a violência mora logo ao lado, na casa da irmã mais nova. Aldinéia do Nascimento Lopes foi casada durante 14 anos. Logo depois de colocar a aliança na mão esquerda, a mão direita do marido passou do carinho ao tapa, do afago para a faca. "Ele bebia muito e quando chegava do bar me agredia sempre. Era uma rotina que eu achava normal". Eles sabiam que quando o pai bebia precisavam esconder todas as facas de casa porque senão ele me mataria
E
nessa 'normalidade' da violência, o casal teve quatro filhos. Nos últimos dois
anos de relacionamento, ela não saía mais de casa, com medo de provocar o
marido. "Se eu conversasse com a vizinha era um motivo de briga e ele já
me atacava com o facão. Eu não sei como estou viva até hoje", lamenta. Os
filhos cresceram nesse ambiente, assistindo a própria mãe ser agredida
diariamente. "Eles sabiam que quando o pai bebia precisavam esconder todas
as facas de casa porque senão ele me mataria", conta.
Ninguém
da família de Aldinéia sabia das agressões e ameaças que ela sofria do marido.
Nem mesmo a irmã, que era policial militar. Em maio deste ano, a dona de casa
fugiu pela primeira vez e ligou para a polícia. "Fiz o boletim de
ocorrência, mas não tinha delegada em Benjamin Constant para fazer o
flagrante", conta a vítima. Eu
sou a prisioneira da história, a culpada por ter procurado a polícia.
Nas
mais de oito horas em que ela esperou por um representante da Polícia Civil
para o marido ser enquadrado na Lei
Maria da Penha foi persuadida a retirar a queixa. "Eu me
senti tão mal, achei que eu estava fazendo o errado, que eu era a culpada por
aquela situação. No final, ele passou por vítima e eu por agressora", diz. Hoje,
o ex-companheiro anda solto pela cidade e Aldicéia presa dentro de casa, com
medo de uma vingança. "Eu sou a prisioneira da história, a culpada por ter
procurado a polícia."
Infraestrutura
Para
além da cultura machista enraizada na região, as cidades amazônicas sofrem o esquecimento do poder público.
O Disque 100,
canal de denúncia do governo federal, não funciona na Tríplice Fronteira, o 180 está fora do ar e
nem delegado existe
para investigar os casos de violência. As cidades de Benjamin Constant, Atalaia do Norte e São Paulo de Olivença
estão há mais de seis meses sem representantes da Polícia Civil.
Agora
me diga qual é a mulher pobre aqui da região que vai ter R$ 40 para viajar.
Elas não vão, preferem ficar em suas casas e aguentar mais um dia de tapa na
cara, mais um dia ouvindo de seus companheiros que não valem nada.
O município mais próximo que tem delegado é Tabatinga, mas você não pode ser violentada no fim de semana porque a delegacia estará fechada. E nem perca tempo em denunciar violência psicológica. Por lá, só vale se você chegar sangrando e com marcas. “Se você sofrer uma agressão por aqui e quiser denunciar vai precisar pegar um barco, pagar 40 reais, viajar durante uma hora até Tabatinga e escutar que não pode ser atendida porque é de outra cidade”, conta Aldicéia. "Agora me diga qual é a mulher pobre aqui da região que vai ter R$ 40 para viajar. Elas não vão, preferem ficar em suas casas e aguentar mais um dia de tapa na cara, mais um dia ouvindo de seus companheiros que não valem nada."
O HuffPost Brasil questionou a Secretaria de Segurança Pública (SSP) do Amazonas o porquê da falta de efetivo nas cidades do Alto Solimões. Em nota, a SSP negou que os atendimentos de violência contra a mulher não estão sendo feitos nas cidades do Alto Solimões. A Secretaria também afirmou que deslocou um delegado de Tabatinga para atender ocorrências nos municípios próximos, como Benjamin Constant.
O
delegado substituto é Thyago Pereira Garcez, que já é responsável por mais duas
bases da Polícia Civil. Ele reconhece a falta de estrutura na região. "A
gente tem dificuldade com tudo: logística, humana, estrutura física. Não temos
efetivo para atender e investigar a quantidade de casos da região. Estamos
tapando os buracos menores primeiro", se defende.
A
família de Gisele
Gonçalves Gomes, de 18 anos, sabe bem o que a falta de efetivo
da polícia significa. Em maio de 2015, a jovem saiu para uma festa com as
amigas na cidade de São Paulo de Olivença. Um grupo de homens serviu uma bebiba
batizada e dopou a jovem. Gisele foi estuprada e violentada e sumiu.
"Fomos até a polícia e por falta de efetivo eles não se importaram com o
caso. Falaram que era coisa de jovem e que voltaria em algumas horas",
conta a irmã da vítima, Ronnie
Gonçalves .
Até
hoje Gisele não voltou. Até hoje a polícia não conseguiu investigar o caso. Os
moradores da cidade assumiram a investigação e fizeram buscas de barco por toda
a região do Rio Solimões. "Minha irmã foi agredida, foi sequestrada e em
troca recebemos silêncio. Até hoje não sabemos se ela está viva ou morta".
Justiceira
Onde
a violência se torna invisível aos olhos da Justiça, uma única mulher tenta
expor os olhos roxos, os desaparecimentos e os assasinatos repentinos de
mulheres do Alto Solimões. Depois de sentir na pele a violência do marido,
Gleissimar deu voz ao que a sociedade amazonense queria calar. "Se você me
perguntasse antigamente se existia violência contra a mulher aqui no Solimões
eu te afirmaria com 100% de certeza que não. A mulher não grita por aqui. Eu
resolvi gritar", diz Gleissimar.
Edgar Maciel - BRASILPOST.