Carta
do Chefe Seattle, escrita em 1854, a Ecologia Política do Papa Francisco e a
ecologia de saberes de Boaventura de Souza Santos.
Josenildo
Santos de Souza
A
carta do chefe indígena retrata e demonstra claramente a relação existente
entre as populações tradicionais com a natureza no processo de uso
ecologicamente equilibrado dos recursos naturais e a defesa ao meio ambiente
para o atendimento das necessidades e qualidade de vida para a sua
sobrevivência.
Este
documento – dos mais belos já escritos sobre o uso do solo – vem sendo
intensamente divulgado pela Organização das Nações Unidas (ONU). É uma carta
escrita, em 1854, pelo chefe Seattle ao Presidente dos Estados Unidos, Franklin
Pierce, quando este propôs comprar as terras de sua tribo, concedendo-lhes uma
outra “reserva”.
Tendo
em vista os graves problemas enfrentados pela sociedade atual, a Encíclica
Ecológica do Papa Francisco, a carta do Chefe Seattle ganha relevância pelas
questões abordadas e nos convida a reflexão dos padrões de produção e consumo.
Serve de alerta aos diferentes modos de vida e a enorme diversidade
socioambiental, cultural, econômica, ecológica e política de compreensão dos
saberes ancestrais e que todos compartilhamos nosso destino comum.
Eis
a carta... “Como é que se pode comprar ou vender o céu, o calor da terra?
Essa ideia nos parece estranha.
Se
não possuímos o frescor do ar e o brilho da água, como é possível comprá-los?
Cada pedaço desta terra é sagrado para o meu povo. Cada ramos brilhante de um pinheiro, cada punhado de areia das praias, a penumbra na floresta densa, cada clareira e inseto a zumbir são sagrados na memória e experiência do meu povo. A seiva que percorre o corpo das árvores carrega consigo as lembranças do homem vermelho.
Os
mortos do homem branco esquecem sua terra de origem quando vão caminhar entre
as estrelas. Nossos mortos jamais esquecem esta bela terra, pois ela é a mãe do
homem vermelho. Somos parte da terra e ela faz parte de nós. As flores
perfumadas são nossas irmãs; o cervo, o cavalo, a grande águia, são nossos
irmãos. Os picos rochosos, os sucos úmidos nas campinas, o calor do corpo do
potro, e o homem - todos pertencem à mesma família.
Portanto, quando o Grande Chefe em Washington manda dizer que deseja comprar nossa terra, pede muito de nós. O Grande Chefe diz que nos reservará um lugar onde possamos viver satisfeitos. Ele será nosso pai e nós seremos seus filhos. Portanto, nós vamos considerar sua oferta de comprar nossa terra. Mas isso não será fácil. Esta terra é sagrada para nós.
Essa
água brilhante que escorre nos riachos e rios não é apenas água, mas o sangue
de nossos antepassados. Se lhes vendermos a terra, vocês devem lembrar-se de
que ela é sagrada, e devem ensinar as suas crianças que ela é sagrada e que
cada reflexo nas águas límpidas dos lagos fala de acontecimentos e lembranças
da vida do meu povo. O murmúrio das águas é a voz dos meus ancestrais.
Os
rios são nossos irmãos, saciam nossa sede. Os rios carregam nossas canoas e
alimentam nossas crianças. Se lhes vendermos nossa terra, vocês devem lembrar e
ensinar a seus filhos que os rios são nossos irmãos, e seus também. E,
portanto, vocês devem dar aos rios a bondade que dedicariam a qualquer irmão.
Sabemos que o homem branco não compreende nossos costumes. Uma porção de terra, para ele, tem o mesmo significado que qualquer outra, pois é um forasteiro que vem a noite e extrai da terra aquilo que necessita. A terra não é sua irmã, mas sua inimiga, e quando ele a conquista, prossegue seu caminho. Deixa pra trás os túmulos de seus antepassados e não se incomoda. Rapta da terra aquilo que seria de seus filhos e não se importa. A sepultura de seu pai e os direitos de seus filhos são esquecidos. Trata sua mãe, a terra, e seu irmão, o céu, como coisas que possam ser compradas, saqueadas, vendidas como carneiros ou enfeites coloridos. Seu apetite devorará a terra, deixando somente um deserto.
Eu
não sei, nossos costumes são diferentes dos seus. A visão de suas cidades fere
os olhos do homem vermelho. Talvez seja porque o homem vermelho é um selvagem e
não compreenda.
Não há um lugar quieto nas cidades do homem branco. Nenhum lugar onde se possa ouvir o desabrochar de folhas a primavera ou o bater das asas de um inseto. Mas talvez seja porque eu sou um selvagem e não compreendo. O ruído parece somente insultar os ouvidos.
E o que resta da vida se um homem não pode ouvir um choro solitário de uma ave ou o debate dos sapos ao redor de uma lagoa, a noite? eu sou um homem vermelho e não compreendo. O índio prefere o suave murmúrio do vento encrespando a face do lago, e o próprio vento, limpo por uma chuva diurna ou perfumado pelos pinheiros.
O
ar é precioso para o homem vermelho, pois todas as coisas compartilham o mesmo
sopro - o animal, a árvore, o homem, todos compartilham o mesmo sopro. Parece
que o homem branco não sente o ar que respira. Como um homem agonizante há
vários dias, é insensível ao mau cheiro. Mas se vendermos nossa terra ao homem
branco, ele deve lembrar que o ar é precioso para nós, que o ar compartilha seu
espírito com toda vida que mantém. O vento que deu a nosso avô seu primeiro
inspirar também recebi seu último suspiro. Se lhes vendermos nossa terra, vocês
devem mantê-la intacta e sagrada, como um lugar onde até mesmo o homem branco
possa ir saborear o vento açucarado pelas flores dos prados.
Portanto, vamos meditar sobre sua oferta de comprar nossa terra. Se decidirmos aceitar, imporei uma condição: o homem branco deve tratar os animais desta terra como seus irmãos.
Sou
um selvagem e não compreendo qualquer outra forma de agir. Vi um milhar de
búfalos apodrecendo na planície, abandonados pelo homem branco que os alvejou
de um trem ao passar. Eu sou um selvagem e não compreendo como é que o
fumegante cavalo de ferro pode ser mais importante que o búfalo, que
sacrificamos somente para permanecer vivos.
O que é o homem sem os animais? Se todos os animais se fossem, o homem morreria de uma grande solidão de espírito. Pois o que ocorre com os animais, breve acontece com o homem. Há uma ligação em tudo.
Vocês devem ensinar as suas crianças que o solo a seus pés, é a cinza de nossos avós. Para que respeitem a terra, digam a seus filhos que ela foi enriquecida com as vidas de nosso povo. Ensinem as suas crianças, o que ensinamos as nossas, que a terra é nossa mãe. Tudo que acontecer a terra, acontecerá aos seus filhos da terra. Se os homens cospem no solo, estão cuspindo em si mesmos.
Isto sabemos: a terra não pertence ao homem; o homem pertence a terra. Isto sabemos: todas as coisas estão ligadas como o sangue que une uma família. Há uma ligação em tudo.
O
que ocorrer com a terra recairá sobre os filhos da terra. O homem não tramou o
tecido da vida; ele é simplesmente um de seus fios. Tudo o que fizer ao tecido,
fará a si mesmo.
Mesmo
o homem branco, cujo Deus caminha e fala com ele de amigo para amigo, não pode
estar isento do destino comum. É possível que sejamos irmão, apesar de tudo.
Veremos. De uma coisa estamos certos – e o homem branco poderá vir a descobrir
um dia: nosso Deus é o mesmo Deus: Vocês podem pensar que O possuem, como
desejam possuir nossa terra; mas não é possível. Ele é o Deus do homem branco.
A terra lhe é preciosa, e feri-la é desprezar seu criador. Os brancos também
passarão; talvez mais cedo que todas as outras tribos. Contaminem suas camas, e
uma noite serão sufocados pelos próprios desejos.
Mas quando de sua desaparição, vocês brilharão intensamente, iluminados pela força do Deus que os trouxe a esta terra e por alguma razão especial lhes deu o domínio sobre a terra e sobre o homem vermelho. Este destino é um mistério para nós, pois não compreendemos que todos os búfalos sejam exterminados, os cavalos bravios sejam todos domados, os recantos secretos da floresta densa impregnados do cheiro de muitos homens, e a visão dos morros obstruída por fios que falam. Onde está o arvoredo? Desapareceu. Onde está a águia? Desapareceu. É o final da vida e o início da sobrevivência”
Os
trechos da Carta do Chefe Seattle, nos remetem a proposta de Boaventura de
Souza Santos (2007) em sua obra Renovar a teoria crítica e reinventar a
emancipação social, na qual propõe uma ecologia dos saberes centrada em cinco
ecologias. Ao abordar uma das ecologias, denominada de Ecologia das
Temporalidades, relata uma experiência semelhante a vivenciada no relato da
carta do Chefe Seattle.
Eis
o relato “Em um projeto no qual estávamos trabalhando na Colômbia, havia uma
luta muito grande pela exploração de petróleo na Sierra Nevada de Santa Marta,
onde vivem os u´was, um povo indígena que ameaçou se suicidar coletivamente
caso explorassem o petróleo em suas terras, por uma razão muito simples: o
petróleo é sangue da terra, e o sangue da terra é seu próprio sangue; sem
sangue não se vive. [...] Essa era uma ameaça muito grande, e em certo momento
o ministro do Meio Ambiente da Colômbia decidiu falar com os taitas (anciões),
os chefes indígenas. Chegou de helicóptero à Sierra Nevada para se reunir com
eles e averiguar por que não aceitavam a exploração do petróleo dizendo que
eram territórios sagrados.
Na
reunião, o ministro perguntou por que não falavam, se era porque não queriam
falar com ele. Até que um disse: “Não, nós queremos, o problema é que temos que
consultar os antepassados”. O ministro perguntou quanto tempo levariam isso, e
o taitas respondeu: “Veja, depende da lua, isso nós consultamos à noite”. E
quem conhece sua etnologia sabe que isso é verdade, que não era uma farsa, era
o que pensavam. O ministro disse que ele não podia ficar até a noite, que o
helicóptero não tinha luzes suficientes, que já havia perdido duas horas de seu
tempo conversando. Foi embora e os taitas continuaram sem falar. E, claro, no
dia seguinte os jornais de Bogotá diziam: “Os taitas não querem falar com
ministro”. Queriam falar, sim, mas em seu tempo... então a ecologia das
temporalidades é, a meu ver, imprescindível” (SOUZA SANTOS, 2007, p. 34-35).